Lição 3... O STRESS E A ESPIRITUALIDADE INTEGRAL Ed René Kivitz


 A oração do Pai Nosso e os conflitos humanos essenciais A busca de significado O apelo dos sentidos O peso da culpa O medo do maligno

A ORAÇÃO DO PAI NOSSO E OS CONFLITOS HUMANOS ESSENCIAIS
Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome; venha o teu Reino;
Seja feita a tua vontade assim na terra como no céu; o pão nosso de cada dia nos dá hoje; e perdoa-nos nossas dívidas, como perdoamos nossos devedores; e não nos deixes cair em tentação, mas livrá-nos do mal Pois teu é o reino, o poder e a glória para sempre. Amém.1
1 Evangelho Segundo São Mateus 6.9-13
A Oração do Pai Nosso é uma possível síntese do insight espiritual cristão, pois coloca o ser humano diante da solução de seus quatro conflitos essenciais: a busca de significado, as necessidades dos sentidos, a peso da culpa, e a opressão do Maligno. Ao encontrar significado para sua aventura existencial, o homem se liberta de seus conflitos elementares. Os conflitos essenciais são a moldura dentro da qual os conflitos circunstanciais acontecem. Quando a moldura é equilibrada, os conflitos menores são atenuados e até mesmo eliminados. Mas quando a moldura é desequilibrada, tal desarranjo potencializa todo o resto. Veja, por exemplo, aquele amigo seu que vive embaraçado com suas finanças. De vez em quando você ouve ele dizer: “esse cinco mil resolveriam meu problema”. Na verdade, o problema a que ele se refere deve ser a dívida do cheque especial, mas o real problema não está identificado. A pergunta certa não é: “Quanto você está devendo?”, mas sim: “Por que você está devendo de novo? O que leva você a administrar seu dinheiro desta maneira?”. Quanta gente você conhece que, mesmo endividada, dá uma festança no aniversário do filho? Este é um exemplo simples de moldura desequilibrada potencializando conflito circunstancial. Jesus, entretanto, trata de questões muito mais profundas, quando comenta os conflitos essenciais de todo ser humano.

CONFLITO ESSENCIAL #1: A BUSCA DE SIGNIFICADO
O muro do cemitério do Araçá, em São Paulo, serviu de moldura para uma pichação feita por um algum “profeta urbano”, que dizia: “Olhe ao redor, estranho, né?”. Aquela expressão fazia pleno sentido para mim. Não me recordo mais o dia em que o mundo se tornou estranho para mim, mas o fato é que houve um dia quando, não apenas o mundo, mas eu mesmo me tornei estranho. Custou para que eu chegasse à conclusão de que errado estava o mundo, e não eu. No fundo de minhas reflexões na juventude estava a desconfiança de que das duas uma: ou o mundo não era obra das mãos de Deus, ou estava, por alguma razão e em certa dose, desfigurado. Aquela frase no muro do cemitério (lugar estranho), me tranqüilizou um pouco. Pelo menos eu não estava sozinho. Mais adiante, fui descobrindo a filosofia, as tradições espirituais e as inquietações da raça. Um dos meus mestres de teologia repetia sempre: “o que é, não pode ser verdade”. De fato, deveria haver outra explicação. E foi o Cristianismo quem me ofereceu a melhor resposta. O Cristianismo diz que enquanto o ser humano não se abre de modo consciente para um relacionamento em termos pessoais com um Deus soberano e transcendente, o universo fica despido de significado.
Deus não é apenas força, amor, luz e verdade. Deus é Espírito inteligente, um Ser com quem o ser humano pode se relacionar em termos pessoais na dimensão de seu próprio espírito: “Deus é Espírito, e importa que os que o adoram, o adorem em espírito e verdade”, palavras de Jesus.2
2 Evangelho Segundo São João 4.23,24 3 Evangelho Segundo São João 10.30 4 Primeira Epístola de São Paulo aos Coríntios 6.19 5 Epístola de São Paulo aos Romanos 8.18-22
Jesus de Nazaré foi à primeira pessoa que se dirigiu a Deus chamando-o de Pai. Na verdade, usou a expressão Abba, que melhor seria traduzida por “paizinho” ou “papai”. Na verdade, Jesus podia se dirigir a Deus desta maneira porque era o unigênito filho de Deus. Jesus era o único gerado de Deus, diferente de todos os seres humanos que foram criados por Deus. Por esta razão, o encontro com Deus é mediado por Jesus. Somente ele, Jesus, podia dizer: “Eu e o Pai somos um”.3 Abba é o balbuciar de uma criança que está aprendendo a falar. O que Jesus pretendia era estabelecer não apenas uma dimensão pessoal em nosso relacionamento com Deus, como também enquadrar este relacionamento numa moldura de extrema afetividade e dependência, como deve ser todo relacionamento entre pais e filhos.
Uma vez que “nascemos de novo”, fazemos conexão com o mundo espiritual, isto é, o nosso espírito recebe a vida do Espírito de Deus, podemos nos dirigir a Ele como quem se encontra “dentro de nós”: “não sabeis que o Espírito Santo habita em vós”4, e assim podemos nos dirigir a Ele chamando-o de Pai. Mas, Deus não é apenas imanente. É também transcendente, e assim podemos nos dirigir a Ele como quem se encontra “nos céus”. Deus não pode ser restrito aos limites do universo criado. A petição para que “santificado seja o teu nome” implica nesta compreensão da singularidade de Deus, de modo que Ele seja visto “separado”, isto é, distinto da realidade criada.
Este Deus que está além do universo criado é um Deus soberano: “venha o teu reino”. Reino é poder, domínio e autoridade. A oração do Pai Nosso parte do pressuposto que o universo possui dimensões onde Deus não reina de fato, senão não pediria que o domínio de Deus se estabelecesse. Não apenas aquele que ora está descondensado, como também o universo está desarmonizado. A harmonia plena somente é possível sob o domínio do reino de Deus. A oração é o passo que indica que as possibilidades de controle do ser humano se esgotaram, sendo necessárias às intervenções de Deus. Estas intervenções de um Deus soberano não podem servir aos caprichos humanos, até porque quem ora sabe que suas possibilidades são limitadas. Por esta razão, Jesus ensina a orar “seja feita a tua vontade”.
A harmonia do plano mental e material (terra) depende da realização da vontade de Deus de forma coerente com o plano espiritual (céu), o que confirma e argumenta o fato de que as leis que regem o mundo são espirituais.
A busca de significado se explica pela latente inconformidade do homem consigo mesmo e com o universo onde habita. Qualquer pessoa que se sinta à vontade no mundo, como ele atualmente se apresenta, está alienada da realidade. O Cristianismo diz que nem o homem é o que pode ser, nem mesmo o mundo é o que será. Primeiro porque o homem está desfigurado por sua escravidão ao ego, longe de expressar a imagem de Deus segundo a qual foi criado. Mas também, porque o próprio universo está desarmonizado, de modo que voltará ao seu equilíbrio pleno quando vier o reino de Deus e a vontade de Deus for feita na terra como é feita no céu. Conforme afirmou São Paulo, apóstolo,
“... eu penso que o que sofremos neste mundo não pode ser comparado, de jeito nenhum, com a glória que nos será revelada. O universo todo, com muito desejo e esperança, aguarda o momento em que os filhos de Deus serão revelados. Porque o universo se tornou inútil, não pela sua própria vontade, mas porque Deus quis que fosse assim. Porém, existe esta esperança: um dia o próprio universo ficará livre da escravidão e da decadência e tomará parte na gloriosa liberdade dos filhos de Deus. Pois sabemos que até agora o universo todo geme com dores iguais às dores de parto. E não somente o universo, mas nós, que temos o espírito Santo como o primeiro presente que recebemos de Deus, gememos dentro de nós mesmos enquanto esperamos que Deus nos faça seus filhos e nos liberte completamente”5 Àqueles que convivem com a angústia existencial, lutando contra as evidências de que a vida neste plano do universo não faz sentido, o Cristianismo manda dizer que a angústia é um sinal de sanidade. De fato, chegará o dia quando todo o universo será plenamente harmonizado. Chegará também o dia quando nós mesmos seremos completamente transformados. Por enquanto, devemos cooperar com a vontade de Deus, a fim de que seu reino se manifeste no mundo, como uma antecipação da maior densidade possível do que será a terra nova.
A oração do pai Nosso abre espaço para um homem desfigurado, vivendo num universo descompensado, sob os olhos amorosos de um Deus transcendente, que deseja realizar sua vontade como no céu e estabelecer seu reino definitivamente, trazendo plena harmonia à criação. Quando você está orando, está não somente assumindo sua solidariedade com a criação, e sofrendo com ela, como também assumindo sua solidariedade com Deus, e cooperando com Ele para a redenção, não apenas das circunstâncias que ocupam sua oração imediata, mas também a redenção do cosmos.

CONFLITO ESSENCIAL #2: O APELO DOS SENTIDOS
O Cristianismo diz que os apetites humanos encontram plena satisfação em Deus: “o pão nosso de cada dia nos dá hoje”. O pão é o símbolo da satisfação plena, isto é, tudo quanto o ser humano precisa para realizar-se integralmente. E todos sabemos que as necessidades humanas transcendem as realidades materiais: “nem só de pão vive o homem”6.
6 Evangelho Segundo São Mateus 4.4 7 Evangelho Segundo São Mateus 6.25-34 8 Evangelho Segundo São Mateus 16.24,25 9 Evangelho Segundo São João 6.31-35
Aliás, levando em consideração a recomendação de Jesus para que os seus discípulos não estivessem preocupados com o que beber ou comer7, seria estranho interpretar o “pão nosso” como uma súplica pela provisão meramente material.
Deus é a fonte da plena satisfação para o ser humano. Toda e qualquer alternativa de satisfação contrária às leis espirituais e em oposição à vontade e o caráter de Deus são “bombas de tempo” para a existência humana. Aquilo que não vem de Deus, pelos caminhos de Deus, não apenas não satisfaz, como também e principalmente funciona como um dreno na alma, que suga do ser humano suas reservas mais preciosas, gerando frustração e culpa.
Quando oramos o Pai Nosso estamos dizendo que não desejamos nada senão o que procede de Deus, e nos recusamos a ter acesso a qualquer coisa que das mãos de Deus não tenha vindo. Mentir para possuir, trair para prosperar, fraudar para enriquecer, enganar para conquistar, atalhar para desfrutar, e tantas outras combinações comuns à sociedade do “jeitinho” ficam de fora do estilo de vida de quem imergiu no mundo do Pai Nosso. Este é o imperativo de Cristo: “quem perder a sua vida, acha-la-á... quem quiser vir após mim, negue-se a si mesmo”.8
Algo muito importante precisa ser compreendido sobre este “pão nosso de cada dia nos dá hoje”. Jesus, na verdade, que muito provavelmente ensinou esta oração recitando-a em aramaico, estava fazendo uma referência ao “pão de amanhã”, numa alusão ao maná que Deus enviava para o povo de Israel enquanto peregrinava no deserto sob a liderança de Moisés. O Dez Mandamentos incluíam a guarda do sábado. Nenhum israelita podia trabalhar no sábado, pois o sétimo dia era totalmente separado para descanso e adoração a Deus. O sábado possuía duas funções: ensinar o povo a depender absolutamente de Deus e não de seus próprios esforços, e criar a imagem de um tempo quando todo o universo seria plenamente satisfeito em Deus. O sábado era uma figura do reino de Deus em plenitude, que o Novo Testamento chama de céu. O céu não é outra coisa senão perfeita harmonia entre Deus e sua criação. Durante a peregrinação com Moisés, Deus alimentava o povo através do maná, o pão de cada dia, que, literalmente, caía do céu. Na sexta-feira, Deus mandava porção dobrada, pois o sábado era dia de descanso e adoração, de modo que ninguém poderia recolher o maná, isto é, ninguém podia trabalhar. Quando Jesus nos ensina a pedir “o pão de amanhã”, está nos dizendo que estamos na “sexta-feira”, e que podemos hoje desfrutar algumas dimensões do “Sábado” que está para chegar. O reino de Deus será estabelecido em breve, mas já podemos comer seus primeiros frutos.
Jesus se apresentou também como “pão da vida”, e deixou claro que ele, Jesus, é o “pão do céu” que Deus o Pai tem para dar. 9 Nesse caso, creio que “o pão de amanhã” é o próprio Cristo, ou a plenitude de Cristo em nós. Evidentemente, Jesus não ensina a abandonar o mundo dos sentidos, mas sim ensinando que ele não é suficiente para a nossa plena satisfação. Somente assim podemos entender “nem só de pão vive o homem”. Isto é, “nem só”, mas também. Ou melhor, ainda, “também, mas nem só”.
Dois trechos da Bíblia podem ser somados neste quebra-cabeça para formar o quadro completo. O primeiro é de São Paulo, apóstolo. Aquele mesmo texto em que diz que “o universo todo está gemendo”, aguardando a sua redenção plena, diz que “não 4
somente o universo, mas nós também, que já temos os Espírito Santo como primeiro presente de Deus”.10 O segundo, é a narrativa que Lucas, evangelista, faz do momento quando Jesus ensina a oração do Pai Nosso.
10 Epístola de São Paulo aos Romanos 8.18-22 11 Evangelho Segundo São Lucas 13.1-13
Lucas coloca o Pai Nosso ao lado de um outro ensino de Jesus, a saber, a súplica para que o Pai nos dê o Espírito Santo.11 A intenção de Lucas é enfatizar que a oração tem como finalidade última à plenitude espiritual. Podemos, portanto, arriscar uma tradução alternativa para “o pão nosso de cada dia nos dá hoje”: A plena comunhão espiritual com teu Filho Jesus, o pão da vida, mediada pela presença do Espírito Santo em nós, nos dá hoje. Sabemos que experimentaremos esta plena comunhão contigo quando o teu reino estiver consumado amanhã. Mas pedimos que Cristo seja cada vez mais real para nós, para que possamos experimentar hoje a plena satisfação que transcende a este mundo dos sentidos”.

CONFLITO ESSENCIAL #3: O PESO DA CULPA
Todos nós carregamos um peso de culpa. Sentimo-nos devedores a nós mesmos, sabendo que deveríamos tomar providências que insistimos em protelar. Carregamos culpa por termos ferido as pessoas que mais amamos; ferimentos involuntários e outros nem tanto, mas que fugiram ao nosso controle. Assim acontece nas relações conjugais e nos horizontes mais próximos da família. Existem três tipos de pessoas que podem ocupar a listas de “mais amados” e “mais odiados” simultaneamente: pais, cônjuges e filhos. Carregamos uma culpa em relação ao próximo, pela superficialidade de nosso compromisso de solidariedade com a raça humana, ou até mesmo nossa responsabilidade enquanto cidadãos. Deixamo-nos levar pela onda de “todo mundo faz” e “ninguém faz”, e lá pelas tantas, estamos envoltos num estilo de vida egocêntrico do qual nos envergonhamos. Além destes poucos e contundentes exemplos, pesa sobre nossos ombros a sensação de que mesmo sem saber, e desconfiados de que na verdade sabemos e não queremos admitir, estamos ferindo um padrão cósmico, universal. Aqueles de nós cujas consciências estão sensíveis, ainda conseguem dormir mal uma noite ou outra, em razão do fato de reconhecer uma perfeição inacessível, e tão ardentemente desejada. O Cristianismo diz que o peso da culpa somente é abandonado quando o ser humano se relaciona com Deus além dos parâmetros da justiça retributiva: “perdoa nossas dívidas”. Enquanto você não abandonar os critérios de “eu mereço, eu não mereço”, sua consciência estará acesa ininterruptamente. Cada vez que você se olhar no espelho, e fizer isso honestamente, estará diante de um devedor. Aliás, perguntaram a um caipira o que ele entendia por “consciência”. Sua resposta foi genial: “Consciência é um cubo que temos na cabeça, e dentro deste cubo gira uma esfera. Cada vez que a esfera bate na parede do cubo, a consciência dói. Algumas pessoas já deixaram a esfera bater tanto no cubo e não fizeram nada, que a parede do cubo foi quebrando aos poucos e a esfera ficou girando em falso”. Estes últimos têm o que chamamos de consciência cauterizada. Vale ressaltar que não estamos falando apenas de nossas dívidas circunstanciais. Estamos nos referindo a uma dívida existencial, diante da grandeza e da perfeição de Deus. estamos falando, portanto, de uma dívida impagável.
A introspecção que nos arremessa na direção do encontro com o homem interior revela as incoerências do homem exterior. Estes desencontros somente são equacionadas no encontro com Deus. Enquanto as tradições meditativas falam de “purificação”, o evangelho fala de perdão. Talvez porque as tradições meditativas levam o homem a sério demais, e a Deus nem tanto. Imaginar que o ser humano possa auto-transformar-se a ponto de qualificar-se a comungar com Deus, equivale a pelo menos uma de duas possibilidades: ou se considera o homem um deus amarrotado, carecendo de reforma e aperfeiçoamento, ou se tem um Deus pequeno demais, que sequer merece ser Deus, pois aquele a quem o homem pode se equivaler não é Deus, é homem, ou ídolo.
A solução de Deus para culpados é o perdão. Se, por um lado, o perdão de Deus joga por terra toda pretensão humana de viver com base nos méritos, também desfere um golpe mortal no senso de rejeição que todos nós carregamos em razão de não atingirmos a perfeição.
O perdão é, portanto, a possibilidade de convivência quando uma das partes contrai uma dívida que não pode ser paga. Assim, o homem exterior devedor encontra alívio e paz somente no perdão de Deus. A oração fundamenta a relação com Deus para além dos méritos e débitos. Além dos méritos, porque o padrão é inatingível. Além dos débitos, porque Deus, sabendo que o padrão é inatingível, provê o perdão.
Quem deseja se relacionar com Deus à luz da justiça retributiva fica falando sozinho. Assim comentou Jesus quando contou a Parábola do Fariseu e do Publicano: “O fariseu, que confiava em sua justiça própria, ao orar, falava de si para si mesmo”. De fato, nesta parábola, Jesus também ensinou a orar: “Ó Deus, tem misericórdia de mim, pecador”12.
12 Evangelho Segundo São Lucas 18.9-14 13 Livro do Profeta Isaías 53.5 14 Segunda Espístola de São Paulo aos Coríntios 5.19,21 15 Primeira Epístola Segundo São João 1.7
Os Padres do Deserto a chamavam de “Oração de Jesus”, e a utilizavam como âncora para a meditação, desejando que ela se tornasse tão instintiva e espontânea quanto a respiração ... algo como uma atitude interior, que transcende a expressão verbal.
O perdão de Deus, por sua vez, quando nos liberta do senso de dívida, nos liberta também da insistência em cobrar nossos devedores, e, nesse caso, transferimos o perdão que recebemos para aqueles que nos devem. A condicional estabelecida por Jesus no Pai Nosso: “perdoa-nos assim como perdoamos”, possui uma explicação simples: quem não perdoa, ainda acredita que deve, e portanto, o perdão recebido é ineficaz; e, quem ainda deve, não perdoa. O perdão de Deus nos liberta tanto de nossa culpa em relação a Ele, Deus, como nos ajuda a libertar os que culpados em relação a nós.
Foi na cruz que Jesus expiou o pecado da raça. Esta verdade do cristianismo foi predita: “o castigo que nos traz a paz estava sobre Ele”, disse profeta Isaías.13 Foi também corroborada pela interpretação que São Paulo, apóstolo, fez da cruz de Cristo: “Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não imputando aos homens os seus pecados...
Aquele que não conheceu pecado, Deus o fez pecado por nós; para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus”.14 Quando estamos vivendo no universo estabelecido pelo Pai Nosso, pisamos em solo de sangue, o sangue de Jesus Cristo, “que nos purifica de todo pecado”.15

CONFLITO ESSENCIAL #4: A OPRESSÃO DO MALIGNO
Há um registro no inconsciente de todos nós quanto ao fato de que o universo é povoado por espíritos malignos. De fato, parece lógico que a crença em Deus implica também crer na ação dos adversários de Deus. Registre-se que o Diabo não é o oposto de Deus, como pretendem os que dizem ser o mal a ausência do bem. O Diabo é apenas o opositor de Deus. Isso porque o oposto de Deus seria outro deus, o que equivale ao Dualismo e não ao Cristianismo. As crianças sempre perguntam quem criou o Diabo. Meus filhos já perguntaram, e tive que explicar dizendo que Deus criou Lúcifer, “anjo de luz”, e Lúcifer criou o Diabo. O Diabo é “Lúcifer Rebelde”. O Diabo existe porque Deus, em sua liberdade, optou por criar seres livres. “Demônios são seres que mudaram o centro do universo para si mesmos... demônios são narcisos incuráveis”, compreende o Rev. Caio Fábio D’Araújo Filho.
O mundo, portanto, é povoado por seres que exercem as funções de antagonismo a Deus, o Criador, e se tornam promotores de desarmonia nos planos material, mental e espiritual. Jesus diz que a segurança do homem em relação ao mal e o Maligno somente é possível a partir de uma ação espiritual superior: “livra-nos do mal”.
Num mundo povoado por demônios, o ser humano corre três riscos. O primeiro é ser vítima da desarmonia provocada por eles. Espero que ninguém considere que um terremoto que mata milhares de pessoas tenha sido planejado no céu, ou que as epidemias sejam obra do divino. É absurdo crer que Deus criou neuróticos de guerra que metralham criancinhas em lanchonetes, maníacos que matam mulheres em parques, além da bandidagem urbana e os bacanas de colarinho branco. Deus não coloca bombas em avião, nem dirige embriagado. Não constrói prédios com material de qualidade duvidosa, não desvia verbas públicas, nem especula na bolsa. Enfim, há no universo e na trama da vida humana um horizonte de realidade maligna que não procede de Deus e afeta todo mundo que tem carne e osso. E qualquer um que pondera sobre isso mais de trinta segundos acaba por temer que um dia essa lama toda se derrame sobre sua cabeça... caso ainda não tenha sido derramada.
Num mundo povoado por demônios, corremos um segundo risco: ser engolidos por eles. Isso seria equivalente a “cair em tentação”. O evento da tentação de Jesus pode ser analisado como uma luta entre o homem exterior e o homem interior, diante do Tentador. As sugestões para a transformação de pedras em pães, e a oferta de atalhos para as posses e o poder podem ser vistas como uma tentativa do Diabo engolir Jesus. Uma vez que o Diabo é um “narciso incurável”, que a tudo quer chamar de “eu”, sua atuação mais rotineira é tentar cooptar, inclusive aquele que jamais esteve à venda.
Finalmente, há um terceiro risco. O risco de nos tornarmos iguais aos demônios que nos tentam. Quem cede à tentação, e se deixa escravizar, acaba sujeito aos propósitos e manipulado por espíritos cujos caminhos se destinam à direção contrária de Deus. Quem é engolido pelo Maligno, é assimilado por ele, e deixa a categoria de vítima para integrar as fileiras de súdito.
O Evangelho é a boa notícia que “Jesus desfez as obras do Diabo”.16 Mais do que isso, o Evangelho diz que a vitória de Jesus contra o Diabo foi conquistada na cruz. De fato, foi ali, na cruz, que Jesus pagou nossa dívida diante de Deus, e se colocou como mediador entre nós e Deus, como também derrotou o Diabo, e se colocou entre nós e o Diabo.17
16 Primeira Epístola Segundo São João 3.8 17 Epístola de São Paulo aos Colossenses 2.13-15 18 Livro do Apocalipse de São João 1.18 19 Evangelho Segundo São Mateus 6.22,23
Quando estamos orando no universo espiritual delimitado pelo Pai Nosso, estamos plenamente seguros quanto ao fato de que as trevas jamais triunfam sobre a luz. Quando estamos orando, nos identificamos com o Espírito de Deus, em comunhão com o nosso próprio espírito, e podemos vencer o Maligno e andar sem temor na vida. Em comunhão com Deus, sabemos que poderemos ordenar “afasta-te de mim, Satanás”, na certeza de que a voz de comando não é nossa, mas do Cristo, que “foi morto, mas ressurgiu, e tem nas mãos as chaves da morte e do inferno”.18

PONDO OS PÉS NO CHÃO
Chegou à hora das perguntas mais importantes. Este é momento quando a teoria passa para a prática. Agora, começamos a colocar os pés no chão. Certamente você deseja saber como podemos cultivar a presença de Deus no corre-corre cotidiano? Ou como podemos cultivar estágios profundos de introspecção do tipo “orar sem cessar”, para que nossa integralidade bio-psíquica-espiritual seja preservada? A resposta a estas perguntas podem ser encontradas numa expressão grega antiga, usada para descrever a preparação dos atletas olímpicos: askesis. Os jogos olímpicos eram os eventos, enquanto as práticas de preparação eram askesis. Esta conceituação combina com a idéia das “práticas ascéticas” ou “disciplinas espirituais” cultivadas pelos místicos do passado. Muitas listas destas disciplinas espirituais foram preservadas historicamente, e ainda hoje beneficiam milhares de pessoas que as praticam. Minha experiência pessoal envolve algumas destas disciplinas, às quais recorro em momentos distintos, alternando as opções de acordo com minhas conveniências, necessidades, vontade e tempo. São recursos que uso para me manter “orando sem cessar” ou “andar com Deus desfrutando de sua companhia”. Quero sugerir pelo menos cinco disciplinas espirituais a titulo de primeiros passos na trilha da peregrinação espiritual.

TRÊS TIPOS DE ORAÇÕES
Pratique regularmente três tipos de orações: orações simples, orações auto-focalizadas e orações de intercessão. As orações simples, as chamo assim porque não observam qualquer padrão ou elaboração. Acontecem espontaneamente, vindas de insights instantâneos, em qualquer lugar, a respeito de qualquer coisa, a qualquer hora.
Estas orações simples duram pouquíssimo tempo, quando no meio de minhas atividades diárias “me lembro” de que estou na presença de Deus e me dirijo a Ele com reverência e afeto. São “encontros” e vislumbres constantes com o Abba Pai. Nestes pequenos encontros ou small talks, acredito estar “santificando Deus em meu coração”, isto é, dando a Ele a primazia e o lugar de honra, trazendo sua presença para o centro das atenções e fazendo a sintonia fina de sua face que está sempre voltada para mim, mas que fica desfocada porque minhas lentes estão sujas, ou, como disse Jesus, “meus olhos não estão iluminados”.19
As orações auto-focalizadas são mais demoradas, e dizem respeito ao meu mundo interior, quando tento perceber os desalinhamentos de minhas emoções, estados mentais e procedimentos. Estas orações estão assentadas basicamente em duas expressões bíblicas. Ou me pergunto como o salmista: “Por que estás abatida, ó minha alma? Por que te perturbas dentro de mim?”20, ou então peço a Deus que me revele o que se passa dentro de mim: “Sonda-me ó Deus, e conhece o meu coração, prova-me e conhece os meus pensamentos; vê se há em mim algum caminho mau e guia-me pelo caminho eterno”.21 Geralmente, estas orações auto-focalizadas me conduzem a dois períodos distintos: a súplica pelo “pão de cada dia” e o pedido de “perdão das dívidas”. As perturbações de minha alma geralmente estão ligadas com necessidades ou pseudo-necessidades não satisfeitas - e por isso peço “o pão”- e posturas e comportamentos que feriram o que já conheço do caráter, propósitos e intenções de Deus para comigo. Estes comportamentos e posturas eu chamo de pecado, e sobre eles peço que Deus derrame seu perdão, de modo que me livre de tais padrões e da culpa que me trazem. Esta é uma das maneiras como oro para que Deus “me livre do mal”. Nas orações de intercessão, desvio o foco de meus pensamentos e desejos de mim mesmo para outras pessoas ou situações. Peço a Deus que estenda sua mão sobre algumas pessoas com quem o meu contato pastoral está mais estreito, ou pessoas que me solicitaram que orasse por elas. Tenho uma lista de pessoas que estão sempre em minhas orações. Nestas orações de intercessão, abro a agenda, o mapa mundi ou o jornal do dia na minha mente, e “peço que Deus traga seu reino e faça a sua vontade” em lugares e circunstâncias que não me afetam diretamente. Estas orações de intercessão trazem sempre dois resultados imediatos. O primeiro deles é que esta abstração faz com que na volta eu experimente meu pequeno mundo de maneira muito mais satisfatória, uma vez comparado às necessidades tão mais conflitivas que foram objeto de minhas súplicas a Deus. Em segundo lugar, estas abstrações me libertam de uma tendência egocêntrica, disciplinando meu coração a tornar-se cada vez mais inclusivo e solidário. As orações de intercessão também produzem um terceiro fruto. Muitas vezes, enquanto oro, percebo que eu mesmo poso instrumento de Deus para tocar em outras pessoas ou alterar situações. Nesse caso, uma compulsão para obedecer à voz divina cresce dentro e não há como nem porque escapar. Tenho certeza que Deus ouve minhas orações. Tenho muitas histórias para contar. Por isso estimulo você a orar como se Deus estivesse lá. Ele está.

TEXTOS SAGRADOS
20 Livro dos Salmos 42.5 21 Livro dos Salmos 139.23,24 22 Evangelho Segundo São João 5.39 23 Evangelho Segundo São João 6.63 24 Epístola aos Hebreus 4.12 25 Primeira Epístola de São Paulo aos Tessalonicenses 2.13 26 Epístola de São Paulo aos Romanos 12.2 27 Livros dos Provérbios de Salomão 27.17
Leia a Bíblia sistematicamente. Jesus disse que as Escrituras apontam para Ele22, e que a maneira como podemos nos alimentar ele é através de suas palavras, que são “espírito e vida”23, pois “a palavra de Deus é viva e eficaz”24 para produzir frutos espirituais na vida dos que crêem.25 A Bíblia não é apenas um livro de sabedoria milenar, mas essencialmente um livro de revelação espiritual. Por esta razão dizemos que a Bíblia foi inspirada por Deus. Isto é, Deus, de alguma maneira, se identificou pessoalmente com aquilo que mandou escrever. Conforme ensina um de meus mestres, “a Bíblia é o menu, Jesus é a refeição”.
Através da leitura e meditação baseada na Bíblia você receberá insights espirituais. Estes insights são instrumentos de Deus para nos transformar através da “renovação do nosso entendimento”.26. Novamente, estamos diante de “legos mentais”, que precisam ser substituídos pela verdade. E não duvide, Jesus disse que “a verdade liberta”.

AMIZADES ESPIRITUAIS
Participe de um pequeno grupo de cristãos. Reuna-se regularmente com pessoas cujos corações estejam alinhados com o seu coração, cujos interesses, valores, prioridades e anseios sejam compatíveis com sua perspectiva de vida. Poucas coisas são tão relevantes para o processo de transformação pessoal e peregrinação espiritual como as amizades espirituais. A sabedoria bíblica diz que “como o ferro com o ferro se afia, também o homem, ao seu amigo”.27 Pessoas que andam em intimidade com Deus nos ajudam a ver Deus além de nós mesmos, e nos ajudam a ver como Deus nos vê. Como bem disse Virgil Vogt, “se você não pode ouvir a seu irmão, não pode ouvir o Espírito Santo”.28 Todos nós precisamos de pessoas para quem prestar contas de nossa peregrinação espiritual. Um par de amigos íntimos, um pequeno grupo de oração e estudo bíblico, e até mesmo um mentor espiritual, são vitais para o mundo espiritual se forme em nós, de dentro para fora. Quem deseja ser transformado por Deus, ao invés de apenas buscar a Deus em momentos de desespero com interesses de dádivas eventuais, precisa entrar na teia de relacionamentos dos filhos da luz.

SOZINHO, EM SILÊNCIO.
28 Foster: 1983, p.217 29 Evangelho Segundo São Mateus 4.1-11; 14.13,23; Evangelho Segundo São Marcos 1.35; 6.31 30 Evangelho Segundo São Mateus 17.20 31 Carta aos Hebreus 11.6
Fique sozinho, em silêncio. Os místicos chamavam este ficar sozinho de “solitude”, diferente de solidão. Jesus constantemente se retirava para lugares desertos a fim de orar, de modo que pudesse estar em solitude, porque sozinho, mas não em solidão, porque com o Abba Pai.29 A solitude não equivale à mera ausência, mas sim a uma ausência cheia de atenção. Atenção à voz recriadora de Deus. A solitude é uma disponibilidade intencional para Deus. Nesse sentido, existe grande diferença entre “meditação para relaxamento”, prática de lazer, e solitude. Esta diferença se mostra na história do homem que recebeu de seu terapeuta a recomendação de ficar sozinho, pelo menos uma hora a cada semana. Na primeira seção após a recomendação o paciente estava eufórico: “Foi ótimo, doutor, há muito que não separava tempo para mim mesmo”. “O que você fez enquanto esteve sozinho?”, perguntou o terapeuta. “Li Fernando Pessoa e ouvi algumas peças de Vivaldi”. “Mas não foi isso que mandei você fazer”. “Ora, o senhor não mandou que eu ficasse sozinho, pelo menos durante uma hora, a cada semana?” “Exatamente, eu recomendei que você ficasse sozinho, não em companhia de Fernando Pessoa ou Vivaldi”. “Mas, doutor... eu não me agüento”. Minha solitude é exercitada através de corridas três ou quatro vezes por semana. Percorro quase sempre a mesma distância, geralmente no mesmo percurso, e na mesma velocidade, de modo que sei exatamente quanto tempo tenho para ficar sozinho. Geralmente, inicio as corridas em estado de excitação. Enquanto corro, digo para mim mesmo: “Não adianta ter pressa. O outro lado do lago chega somente daqui a 5 minutos”. Não demora muito para que eu encontre um ritmo confortável, estabilize minha respiração e desacelere o turbilhão de pensamentos que passa pela minha cabeça. Tento deixar que esses pensamentos sigam seu caminho sem me deter em nenhum deles. Já perdi a conta de quantos encontros tive com Deus em meio às árvores do Parque do Ibirapuera, e não tenho palavras para descrever os lugares onde já cheguei nos minutos em que me dedicava a correr em círculos para chegar a lugar nenhum. Muitas vezes, entretanto, pratico minhas corridas apenas como recreação: re-criação, ouvindo música ou refletindo sobre alguma coisa que me incomoda. Mesmo assim, geralmente chego ao final das corridas com insights maravilhosos. Um dos melhores caminhos para a solitude é a prática de atividades mecânicas, que não ocupam nossa atenção concentrada. Ghandi, por exemplo, usava seu tear para recolher-se do mundo. Os movimentos autômatos estabilizam a freqüência dos pulsos elétricos do nosso cérebro, o que aumenta nossa capacidade de percepção e captação. Alguns meditativos diriam que enquanto corro, ouço a voz da minha consciência, minha imaginação e capto algumas mensagens no ar. Não duvido. Mas ninguém vai me fazer descrer que muitas destas vozes são de Deus.

CONCLUSÃO
Mais do que de auto-ajuda, o ser humano precisa de ajuda do alto. A sintonia entre o espírito do homem e o Deus Espírito é a única possibilidade de superação do complexo bio-psíquico. A dimensão última do ser humano é espiritual.
Arquimedes queria um ponto de apoio fora do universo. Disse que seria capaz de fazer uma alavanca e mover a terra de seu eixo. Jesus ofereceu esse ponto: “a fé remove montanhas”.30 A fé é a alavanca da oração: “sem fé, é impossível agradar a Deus, porquanto é necessário que aquele que se aproxima de Deus creia que ele existe e que é galardoador dos que o buscam”.31
O encontro com Deus é sempre um passo de fé. As expressões bíblicas “crer” e “ter fé” são distintas. Infelizmente, as traduções dos textos bíblicos tornaram as expressões equivalentes, mas na verdade, falam de duas coisas diferentes. Crer é assumir como verdadeiro, ter fé é sintonizar interativamente. Crer equivale a assumir como verdadeiro que existem ondas magnéticas no ar. Ter fé equivale a sintonizar as ondas para assistir TV ou ouvir rádio. Quem sabe que existem ondas no ar, crê. Quem sintoniza, tem fé. É possível, portanto, crer sem ter fé. A fé que remove montanhas não é aquela que sabe que Deus existe, mas aquela que além de saber que Ele existe, é galardoador, isto é, interage, comunga, participa.
Isto faz perfeito sentido com a compreensão de que Deus é transcendente e imanente, e que “o Espírito de Deus se comunica com o nosso espírito”32, conforme afirmou São Paulo, apóstolo. A fé transcende a manipulação de processos mentais que qualificam a química do cérebro, e catapulta o ser na direção de um relacionamento com Deus. Um relacionamento pleno de possibilidades.
32 Epístola de São Paulo aos Romanos 8.17