Abraão, o Amigo de Deus

Pr. Walter Santos Baptista

"Ora, o Senhor a Abrão: Sai-te da tua terra, da tua parentela, e da casa de teu pai, para a terra que eu te mostrarei. Eu farei de ti uma grande nação; abençoar-te-ei, e engrandecerei o teu nome; e tu, se uma bênção. Abençoarei aos que te abençoarem, e amaldiçoarei aquele que te amaldiçoar; e em ti serão benditas todas as famílias da terra. Partiu, pois, Abrão, como o Senhor lhe ordenara, e Ló foi com ele. Tinha Abrão Setenta e cinco anos quando sai de Harã. Mas tu, o Israel, servo meu, tu Jacó, a quem escolhi, descendência de Abraão, meu amigo"
(Gn 12,1-4; Is 41,8)

Com a entrada de Abraão no cenário bíblico, inicia-se a história de dois mil anos do pacto de Deus com ele, e através dele, com toda a humanidade. Na pessoa de Abraão, Deus começa a obra de redenção daquele que crê (Rm 4.11). Tem início com Abraão, vai a Isaque, seu filho, a Jacó, seu neto, a Judá, seu bisneto, e segue até Jesus Cristo (cf. Mt 1.17; Rm 3.21,22). É ele o perfeito exemplo do que significa viver pela fé, ou, como designou o Dr. Page Kelley, querido ex-professor, o "projeto-piloto" de Deus na redenção de todos os povos.

A vida de Abraão gira em torno de duas ordens de partida:

  1. " Sai-te da tua terra..." (Gn 12.1) e
  2. "Toma agora teu filho..." (Gn 22.2).

Vamos a elas.

"SAI-TE DA TUA TERRA..." (Gn 12.1-4)

O fato é que Deus requer de Abraão que deixe sua terra e seus parentes idólatras. Isso acontece por volta de 1976 a.C. Vai com Sara (a esposa), com Ló (o sobrinho), servos e gado.

Josué 24.2,3 diz que Abraão deixou a sua terra e seu clã para se afastar da idolatria que ali reinava (cf. Gn 31.19). Deus tinha uma mensagem que desejava passar a toda a humanidade. Alguém disse que "o melhor meio de enviar uma mensagem e amarrá-la no mensageiro" (como um pombo correio). Foi o que Deus fez com Abraão, e a tarefa, ele a cumpriu com fé e obediência. A ordem para deixar sua terra, familiares e pais foi algo muito mais sério para ele do que teria sido para nós. Na época de Abraão, a paz e segurança que se conhecia era a de estar com sua família. Quando alguém deixava essa segurança ficava exposto a todos os perigos.

Abraão não conhecia a Deus. Para ele, falar de religião com seus pais, irmãos, familiares e contemporâneos de Ur era falar do deus-lua chamado Sin, principal divindade de sua terra. Ele conhecia também o deus-sol, Nana, e sabia de Anu, o deus do céu dos sumerianos.

Tudo isso significa que para Abraão sair da sua terra, da sua parentela e da casa dos seus pais era um apelo espiritual que lhe chegava na revelação do Deus único, verdadeiro. Apelo a uma integridade que ele não poderia encontrar no panteão de deuses mitológicos. E assim ele parte. Vai para Canaã. O escritor de Hebreus rende uma homenagem a Abraão quando diz que, " Pela fé Abraão, sendo chamado, obedeceu saindo para um lugar que havia de receber por herança; e saiu, sem saber para onde ia" (Hb 11.8).

É preciso uma "saída", uma separação radical para ser orientado pela pedagogia divina. Afinal, não vivemos no meio de tantos deuses da época atual? O dinheiro não é um poderoso deus? O poder não é um deus que apela? O prazer? A posição social?

É preciso sair. Sair da idolatria, dos deuses falsos , de tudo o que prejudica a comunhão com o Eterno. Fé não é simplesmente crer num conjunto de parágrafos sobre a pessoa de Deus, mas comprometimento com Ele, porque fé é, primariamente, palavra de relacionamento pessoal com o Criador.

A chamada de Abrão envolve uma dupla promessa: a de terra (Gn 12.7) e a de descendência (Gn 15.5) . E foi uma chamada grande de sacrifício, para compromisso total, e para um novo sentido, caminho, curso na vida. Essa a razão porque Abraão recebe duas ordens: a de andar diante de Deus, e a de ser perfeito (Gn 17,1). A vida , na Bíblia, é descrita como um caminho por onde se anda; é uma peregrinação. Ser perfeito, por sua vez, é ser integro, inteiro, completo. É, portanto , vida de rendição total e incondicional a Deus. E Abraão o aceita (cf. Gn 17.3a). Aí, começam suas provas, seus testes de fé.

AS PROVAS

São, pelo menos, sete as promessas de Deus a Abraão:

  1. seria pai de uma grande nação (e nem herdeiro tinha!);
  2. Deus o abençoaria durante a vida;
  3. seria ria uma figura mundial (talvez nem precisasse citar que três grandes grupos religiosos derivam da fé de Abraão. E a ele rendem suas homenagens: os judeus, os cristãos e os muçulmanos);
  4. seria uma bênção para outras pessoas (Não é só destaque e fama: é serviço; o crente há de ser uma bênção sempre: seja porteiro de um edifício, industriário, bancário, pequeno comerciante, profissional liberal, executivo de empresa ou autoridade civil);
  5. suas bênçãos serão compartilhadas com os que o recebessem (o que significaria abertura para a proximidade de Deus);
  6. os que degradassem e amaldiçoassem Abraão, os insensíveis para com Deus e Suas promessas, trariam sobre eles a própria ira de Deus;
  7. influência universal.

Mas as provas são pesadíssimas. Foi-lhe prometida numerosa descendência, mas não tinha filhos. Ele e Sara já são de idades avançadas, e ela, ainda mais, estéril. Abraão toma a providência de adotar um servo: Eliezer (Gn 15.3) Não era a solução de Deus (cf. Gn 15.4), e, mais ainda, Deus não permite que tracemos Seu programa! Sara toma a sua providência: entrega ao marido uma serva egípcia (Agar). Isso aconteceu onze anos depois do "projeto Eliezer", e o objetivo é que a criança nascida da união fosse sua. Nasceu Ismael desse "arranjo" de Sara ("projeto Agar"). Não era, porém, repetimos, a solução de Deus (Gn 18.10), porque, mais uma vez afirmamos, Ele não permite que tracemos Seu programa! Passam-se vinte anos antes que Isaque, o filho da promessa, nasça.

A segunda prova foi a da fome em Canaã. Fome na terra prometida Sera que Deus havia se enganado Afinal, Abraão estava em paz com os seus, materialmente bem, mas a fome foi um teste de fé que lhe veio após um tempo de comunhão.

Outra prova ocorreu no Egito. Foi uma questão de fraqueza moral. Abraão e culpado de egoísmo, engano e mentira; colocou a esposa em situação difícil. Sua proposta, aliás, foi:

"Quando ele estava prestes a entrar no Egito, disse a Sara, sua mulher: Ora, bem sei que es mulher formosa a vista; e acontecera que,quando os egípcios te virem, dirão Esta é mulher dele. E me matarão a mim, mas a ti te guardarão em vida. Dize, peço-te, que és minha irmã, para que me va bem por tua causa, e que viva a minha alma em atenção a ti."(Gn 12.11-13).

Usou de meia verdade (v. 13; cf. 20.12). verbalmente verdadeiro, mas falso na realidade. Abraão não teve consideração por Sara. Alguém poderia perguntar porque a Bíblia registrou essa história tão triste e escabrosa. Lembramos que a Bíblia não esconde os erros dos seus heróis porque chama o pecado de pecado, o mal de mal, a virtude de virtude, e a bênção de bênção. Daí um Noé e um Loó bêbados , um Jacó enganador, um Moisés medroso, um Davi adúltero e um Pedro mentiroso.

E, finalmente, a grande prova: Moriá.

MORIÁ (Gn 22)

Depois dessa longuíssima espera, nasce Isaque, o filho da promessa. Está agora rapazinho com cerca de doze ou treze anos. E quando Abraão recebe a segunda ordem: a primeira foi a de deixar Ur dos Caldeus, Ur dos seus parentes, para o passado. A segunda é a de se desfazer de seu futuro: "Prosseguiu Deus: Toma agora teu filho, o teu único filho, Isaque, a quem amas; vai a terra de Moriá, e oferece-o ali em holocausto sobre um dos montes que hei de mostrar" (Gn 22.2).

Abraão está fadado a ser o homem do presente. Só do presente, sem passado e sem futuro. Seu futuro tão aguardado vai ser sacrificado.

Dá para imaginar o sentimento de alegria que sentiu o garoto quando o pai o chamou para a viagem de três dias à terra de Moriá: a animação do preparo das bagagens, a partida, a chegada ao pé da montanha no terceiro dia. Isaque vê que tudo de que se necessita está pronto: a madeira, as correias de couro para amarrar a vítima, a faca, o fogo, o incenso. Mas falta o cordeiro: "Pai, não esqueceu de alguma coisa?"

E o sentimento de Abraão, a sua introspecção enquanto caminhavam aqueles 120 km. Três dias de marcha sem uma palavra. Era tempo bastante para voltar para casa se Abraão quisesse mudar de idéia. Três longos dias e três frias noites!

Finalmente, aí está Moriá, o monte da suprema provação, da prova que a linguagem humana é quase incapaz de analisar. Os servos e o animal ficam no sopé do monte. Abraão e Isaque o sobem. Como em Ur não discutira o Patriarca a ordem de sair, também aqui não o faz. Cabe nesse ponto lembrar que ainda existia entre os pagãos o costume de imolar os primogênitos quando se construía uma casa. Era o chamado "sacrifício do alicerce". No alto de Gezer, centro do paganismo foram descobertas urnas com esqueletos de criancinhas, de bebês. Em Megido, encontrou-se o esqueleto de uma mocinha de cerca de quinze anos.

Abraão não entendera a ordem divina, mas obedeceu. É o que se requer: obediência Diz a Escritura que "As coisas encobertas pertencem ao Senhor nosso Deus, mas as reveladas nos pertencem a nós e a nossos filhos para sempre, apra que observemos todas as palavras desta lei" (Dt 29.29). E, ainda: "Eis que o obedecer e melhor do que o sacrificar, e o tender, do que a gordura de carneiros"(1 Sm 15.22b; cf. Jr 42.5,6; Os 6.6).

O altar vai sendo construído. Abraão olha o altar, olha o filho, olha a distância. Isaque pergunta, " Meu pai, e o cordeiro?" Abraão se lembra da ordem que veio num crescendo para não deixar duvidas: "Toma teu filho" > "(toma) o teu único filho" >toma o teu filho ( a quem amas) > "toma Isaque" . E devagar o altar vai sendo levantado. Pedra sobre pedra, lenha, sobre lenha. "E o cordeiro, meu pai" "Isaque, meu filho a quem amo, o cordeiro é... você... Mas o Senhor vai providenciar as coisas, Ele proverá. Ele dirá (o que fazer). Pois tanto confiava Abraão que disse aos servos, "depois de adorarmos, voltaremos a vos" (Gn 22.5b). E até, a certeza, a confiança, a segurança a esperança (Hb 11.19).

E o Senhor o fez. No momento em que a faca ia imolar a vitima, o garoto Isaque, o Senhor o fez porque Ele é Javé-jire, o "Senhor que providencia". E o cordeiro foi colocado ao dispor de Abraão, razão porque o monte se chama Moriá: lugar da providência, de visão, da provisão. Daí porque cantamos,

"Sei que Deus o meu futuro
Tem na sua mão;
Seus desvelos compassivos
Incessantes são.

Inda que eu mais tarde encontre
Provações e dor
Por detrás das negras nuvens
Brilha o seu amor".
(Hino n 332 CC)

Sim. Moriá é o monte da (nova) visão de Deus, o monte da revelação. Abraão precisava aprender ou refinar algo: sua fé. Existe entre os teólogos judeus a idéia que no Monte Moriá, Caim e Abel ofereceram os primeiros sacrifícios, e que Noé ofereceu a Deus um sacrifício de gratidão. Os crentes da Igreja do Novo Testamento comparavam o Moriá ao Calvário: dois montes, em ambos um sacrifício. Como Isaque carregou a lenha, Jesus levou a cruz. Nenhum dos dois reclamou, e nisto está a diferença: em Moriá, o cordeiro estava providenciado; no Calvário, Jesus foi " o cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo" (Jo 1.29). No terceiro dia, no entanto, ambos foram recobrados: Isaque foi solto no altar, Jesus ressuscitou dentre os mortos.

O Pr. David Gomes relata que num dos retiros de senhoras onde falava, uma disse: "Pastor, sou crente há muitos anos, mas somente agora tive uma verdadeira visão de Deus". Não; não, chame isso de "Segunda Bênção" ou batismo no Espírito Santo "posterior" à sua conversão. Por outro lado, não faça de coisas pretensamente assombrosas meio de revelação de Deus. "Outro" deve estar querendo se revelar!

Há lições preciosas a extrair da história de Abraão, "o amigo de Deus". A primeira é que temos de corrigir a teologia popular do que significa ser eleito de Deus. Não é viver do que significa ser eleito de Deus. Não é viver numa redoma de cristal; não é não ser atingido pela dureza e reveses da vida. Senão como explicaríamos Jeremias 1.5 e 20.2:

"Antes que eu te formasse no ventre te conheci, e antes que saísses da madre te santifiquei; às nações te dei por profeta",

e

"Então feriu Pasur ao profeta Jeremias, e o meteu no cepo que está na porta superior de Benjamin, na casa do Senhor".

Gálatas 1.15 e 2 Co 11.23-27, acrescentam,

"Mas, quando aprouve a Deus, que desde o ventre de minha mãe me separou e me chamou pela sua graça";

"São ministros de Cristo? (falo como fora de mim) eu ainda mais; em trabalhos, muito mais; em prisões, muito mais; em açoites, sem medida; em perigo de morte, muitas vezes; dos judeus, cinco vezes recebi quarenta açoites menos um. Três vezes fui açoitado com varas, uma vez fui apedrejado, três vezes sofri naufrágio, uma noite e um dia passei no abismo; em viagens muitas vezes; em perigos de rios, em perigos de salteadores, em perigos dos da minha raça, em perigos dos gentios, em perigos na cidade, em perigos no deserto, em perigos no mar, em perigos entre os falsos irmãos; em trabalhos e fadiga, em vigílias muitas vezes, em fome e sede, em jejuns muitas vezes, em frio e nudez".

Na verdade, ser chamado por Deus não coloca o crente em Jesus Cristo em posição privilegiada. Pelo contrário, expõe o cristão a grandes provações, dificuldades e sacrifícios (como Estevão, ou Pedro, ou Paulo).

Outra lição da vida de Abraão é que os bens mais queridos da vida podem, algumas vezes, se constituir em tentações sutis de falta de fé. Abraão amava Isaque, mas amava a Deus. O seu conflito é o de escolher entre um e outro. Isso nos lembra Jesus e Sua Palavra: " Quem ama o pai ou a mãe do que a mim, não e digno de mim. E quem ama o filho ou a

filha mais do que a mim não e digno de mim" (Mt 10.37).

A terceira das lições é que as mais ricas bênçãos são reservadas aos que estão totalmente e ser reservas à disposição do Senhor. Ele não prova os maus, prova os justos porque os quer "justos e perfeitos" (Gn 18,23; 17,1; 6,9). Essa é a explicação porque em virtude de sua fé) Abraão foi chamado "o amigo de Deus" (2 Cr 20.7; Is 41.8; Tg 2.23).

Mais uma lição: Abraão foi um grande construtor de altares. Há pessoas que são reconhecidas pelas maldades e impiedades que praticaram; há quem seja conhecido pelos bens. Abraão o foi pelos altares. É o que na linguagem religiosa se chama "o temor do Senhor", devoção suprema, dedicação exclusiva a Deus. Era homem de piedade. Construiu um altar em Siquém (Gn 22.9). Numa terra pagã há quem invoque o Nome do Senhor, um altar foi construído.

A propósito, o altar está armado em sua casa? Diz a Escritura em Gênesis 12.8 que "...armou a sua tenda... (e) edificou um altar ao Senhor". Como vai a vida religiosa de sua casa? O evangelho no lar? O exemplo é o de Abraão: trabalhador, obediente, piedoso, homem de fé. Por causa dessa fé, Abraão e chamado "pai dos crentes" (cf. Rm 4.8), num exemplo correto de fé que justifica (Gn 12.2; Hb 11.11,12). É viver, então, por essa obediência que nasce da segurança, confiança e esperança!

Walter Santos Baptista, Pastor da Igreja Batista Sião em Salvador, BA
E-Mail: wsbaptista@terra.com.br

http://www2.uol.com.br/bibliaworld/igreja/estudos/at022.htm