Na Presença de Deus

NA PRESENÇA DE DEUS
Rev. Josivaldo de França Pereira

Uma das passagens bíblicas do Antigo Testamento que sempre me fascinou está registrada em 1 Crônicas 17*. Um dos motivos dessa minha fascinação, que não deixa de vir acompanhada de um profundo sentido de reverência, será apresentado no decurso deste artigo.

O texto de Crônicas trata da aliança do Senhor com Davi e da oração de ações de graça que este fez. Você poderá lê-lo na íntegra agora mesmo, para uma melhor compreensão daquilo que pretendemos abordar logo em seguida.

Sucedeu que, habitando Davi em sua própria casa, disse ao profeta Natã: Eis que moro em casa de cedros, mas a arca da aliança do Senhor se acha numa tenda. Então Natã disse a Davi: Faze tudo quanto está no teu coração; porque Deus é contigo. Porém naquela mesma noite, veio a palavra do Senhor a Natã, dizendo: Vai, e dize a meu servo Davi: Assim diz o Senhor: Tu não edificarás casa para a minha habitação; porque em casa alguma habitei, desde o dia que fiz subir a Israel até ao dia de hoje; mas tenho andado de tenda em tenda, de tabernáculo em tabernáculo. Em todo lugar em que andei com todo o Israel, falei acaso alguma palavra com algum dos seus juízes, a quem mandei apascentar o meu povo, dizendo: Por que não me edificais uma casa de cedro? Agora, pois, assim dirás ao meu servo Davi: Assim diz o Senhor dos Exércitos: Tomei-te da malhada, e detrás das ovelhas, para que fosses príncipe sobre o meu povo Israel. Eu fui contigo, por onde quer que andaste, eliminei os teus inimigos de diante de ti, e fiz grande o teu nome, como só os grandes têm na terra. Preparei lugar para o meu povo Israel, e o plantarei, para que habite no seu lugar, e não mais seja perturbado, e jamais os filhos da perversidade o oprimam, como dantes; desde o dia em que mandei houvesse juízes sobre o meu povo Israel; porém abati a todos os teu inimigos; também te fiz saber que o Senhor te edificaria uma casa. Há de ser que, quando teus dias se cumprirem, e tiveres de ir para junto de teus pais, então farei levantar depois de ti o teu descendente, que será dos teus filhos, e estabelecerei o seu reino. Esse me edificará casa; e eu estabelecerei o seu trono para sempre. Eu lhe serei por pai, e ele me será por filho; a minha misericórdia não apartarei dele, como a retirei daquele, que foi antes de ti. Mas o confirmarei na minha casa e no meu reino para sempre, e o seu trono será estabelecido para sempre. Segundo todas estas palavras, e conforme a toda esta visão, assim falou Natã a Davi.

Então entrou o rei Davi na casa do Senhor, ficou perante ele, e disse: Quem sou eu, Senhor Deus, e qual é a minha casa, para que me tenhas trazido até aqui? Foi isso ainda pouco aos teus olhos, ó Deus, de maneira que também falaste a respeito da casa de teu servo para tempos distantes; e me trataste como se eu fosse homem ilustre, ó Senhor Deus. Que mais ainda te poderá dizer Davi, acerca das honras feitas a teu servo? pois tu conheces bem a teu servo. Ó Senhor, por amor de teu servo, e segundo o teu coração, fizeste toda esta grandeza, para tornar notórias todas estas grandes cousas! Senhor, ninguém a semelhante a ti, e não há outro Deus além de ti, segundo tudo o que nós mesmos temos ouvido. Quem há como o teu povo Israel, gente única na terra, a quem tu, ó Deus, foste resgatar para ser teu povo, e fazer a ti mesmo um nome, com estas grandes e tremendas cousas, desterrando as nações de diante do teu povo, que remiste do Egito? Estabeleceste a teu povo Israel por teu povo para sempre, e tu, ó Senhor, te fizeste o seu Deus. Agora, pois, ó Senhor, a palavra que disseste acerca de teu servo e acerca da sua casa, seja estabelecida para sempre; e faze como falaste. Estabeleça-se, e seja para sempre engrandecido o teu nome, e diga-se: O Senhor dos Exércitos é o Deus de Israel; e a casa de Davi teu servo será estabelecida diante de ti. Pois tu, Deus meu, fizeste ao teu servo a revelação de que lhe edificarias casa. Por isso o teu servo se animou para fazer-te esta oração. Agora, pois, ó Senhor, tu mesmo és Deus, e prometeste a teu servo este bem. Sê, pois, agora servido de abençoar a casa de teu servo, a fim de permanecer para sempre diante de ti, pois tu, ó Senhor, a abençoaste, e abençoada será para sempre.

Depois de receber um balde de água fria em suas boas e louváveis intenções, Davi é alentado novamente com a excelente notícia de que o seu reino seria estabelecido para sempre. Imediatamente ele esquece a tristeza e começa a louvar a Deus numa oração de ações de graça. Desta belíssima oração queremos destacar um dos pontos cruciais da mesma, que é a primeira parte do versículo que diz: "Então entrou o rei Davi na casa do Senhor, ficou perante ele, e disse..." (1º Cr 17.16).

Observe a expressão: "ficou perante ele". Ela é tão fundamental e imprescindível no relato bíblico que eu me atrevo a dizer que a oração, a adoração, o louvor, ou qualquer atitude cristã que possa ser definida como digna do agrado de Deus não subsiste quando não se compreende o que realmente significa estar na presença de Deus. Antes de começar a abrir a boca para falar, Davi se colocou na presença do Senhor.

Defendo a tese de que estar na presença de Deus, com toda a implicação que ela significa, é tão importante quanto a oração em si ou qualquer ato cúltico propriamente dito.

A expressão hebraica hfwoh:y y^en:pIl (perante o Senhor) que aparece apenas uma única vez na oração de Davi, ocorre muitas vezes no Antigo Testamento. Somente no livro de Levítico a expressão, com seus sinônimos correlatos, aparece cerca de sessenta vezes. Sua única ocorrência na oração de Davi é suficiente para determinar todo o conteúdo da oração do salmista.

Antes de tratarmos acerca do que significa estar diante do Senhor, é importante tentarmos compreender primeiramente em que consiste a presença de Deus.

A PRESENÇA DE DEUS
Tanto no Antigo quanto no Novo Testamento há pelo menos três sentidos básicos e essenciais onde os substantivos hebraico {yinfP e grego pro/swpon (rosto, face, semblante) e as preposições y^en:pIl e e)nw/pion (perante, diante de, em face de) são, respectivamente, utilizados para indicar a presença de Deus na Bíblia. Em primeiro lugar, temos a presença geral e inescapável de Deus, como aquela que é descrita no Salmo 139.7-12: Para onde me ausentarei do teu Espírito? para onde fugirei da tua face? Se subo aos céus lá estás; se faço a minha cama no mais profundo abismo, lá estás também; se tomo as asas da alvorada e me detenho nos confins dos mares: ainda lá me haverá de guiar a tua mão e a tua destra me susterá. Se eu digo: As trevas, com efeito, me encobrirão, e a luz ao redor de mim se fará noite, até as próprias trevas não te serão escuras: as trevas e a luz são a mesma cousa.

Um segundo sentido é o que podemos chamar de presença celestial de Deus. Em Eclesiastes 5.2 lemos: Não te precipites com a tua boca, nem o teu coração se apresse a pronunciar palavra alguma diante de Deus; porque Deus está nos céus, e tu, na terra; portanto, sejam poucas as tuas palavras. "Céus" aqui é o lugar da habitação de Deus, às vezes denominado "alturas", "alturas dos céus" ou "céus dos céus" (Sl 113.5; Jó 22.12; 1 Rs 8.27). É, de certa forma, o lugar onde habita a glória de Deus. Digo "de certa forma" porque o termo "alturas", por exemplo, não é designativo de lugar, pois Deus habita a eternidade, mas é significativo daquilo que está além do que está criado, pois Deus já estava lá antes que houvesse céus e terra. Os anjos de Deus estão diante de sua presença celestial (Mt 18.10; Lc 1.19). Os ímpios, por sua vez, serão banidos por toda a eternidade da presença abençoadora de Deus (2 Ts 1.9), visto que diante do Senhor não pode haver nenhuma jactância de justiça própria (1 Co 1.29). Mas os crentes serão apresentados imaculados perante o Senhor pela obra que Cristo realizou em favor deles (Jd 24), para desfrutarem, como queria o salmista, da plenitude de alegria na presença de Deus (Sl 16.11).

O terceiro sentido da presença de Deus refere-se àquela presença especial do Senhor com o seu povo para abençoá-lo. A expressão maior dessa presença foi revelada no Emanuel, o Deus conosco, Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador.

Acerca deste sentido específico da presença de Deus, Geoffrey W. Bromiley faz uma observação interessante. Diz ele: "Pode-se notar que a ênfase da Bíblia não recai na presença divina como uma imanência geral, daí a naturalidade com que se pode dizer que Jonas procurou fugir da presença de Deus (Jn 1.3), ou que os adoradores comparecem diante da presença de Deus (Sl 95.2)" (EHTIC, Vol. III, p. 179). E ainda: "Somos recebidos na presença eterna de Deus somente se tivermos recebido primeiramente a presença de Deus conosco na Pessoa de Jesus Cristo (Jo 1.12)".

É a este terceiro sentido da presença de Deus (presença especial com o seu povo) que vamos nos referir daqui por diante.

O CRISTÃO NA PRESENÇA DE DEUS
Existe uma diferença marcante entre a presença de Deus propriamente dita e o estar na presença de Deus. Que Deus está no meio do seu povo para abençoá-lo é indiscutível. Vimos algumas passagens bíblicas que comprovam esta verdade. Temos hinos bíblicos, teológicos e doutrinários que dizem acertadamente que Deus está aqui. Isso é verdade. A presença de Deus é uma realidade que devemos cantar e crer de todo o nosso coração. A presença de Deus é essencial em nossa vida. Recomendo, para uma maior compreensão da presença especial de Deus, a leitura do excelente artigo de David Wilkerson The Power of the Lord’s Presence !.

Entretanto, estar na presença de Deus é outra coisa. Eu posso afirmar com sinceridade e inteireza de coração que "Deus está aqui", mas isso não significa que necessariamente eu esteja na presença de Deus. Como pode ser isso? Talvez você esteja pensando: "Ora, se Deus está aqui, é evidente que estamos na presença dele". Repito: Que Deus está aqui é fato, porém, isto não significa que necessariamente estamos na presença dele. Imagine uma igreja congregada para orar, louvar e adorar a Deus. Deus está no meio dela (cf. Hb 2.12). Não temos dúvida alguma em relação a isto. Contudo, será que podemos afirmar do mesmo modo que a igreja também "está na presença dele"? Infelizmente não.

Estar na presença de Deus significa se aproximar com a fé e a segurança de que verdadeiramente estamos perante o Senhor. Permita-me esclarecer este ponto com um comentário de R. A. Torrey sobre a oração. Torrey fez a seguinte colocação a respeito da expressão "a Deus" de Atos 12.5:

A primeira coisa a ser notada neste versículo é a breve expressão "a Deus". A oração que tem poder é aquela oferecida a Deus.

Alguns dirão porém, "Mas toda oração não é feita a Deus?"

Não. Grande parte da chamada oração, tanto pública quanto particular, não é feita a Deus. Para que a oração possa ser realmente dirigida a Deus, é preciso primeiro uma aproximação definida e consciente de Deus quando oramos; devemos ter uma compreensão definida e nítida de que Deus está se inclinando e ouvindo quando oramos. Nossa mente está ocupada com a idéia daquilo que precisamos e não com o Pai poderoso e cheio de amor a quem pedimos. Freqüentemente não estamos ocupados nem com a necessidade nem com Aquele a quem estamos orando, mas nossos pensamentos estão vagando aqui e ali, pelo mundo afora. (Como Orar, pp. 20,21).

Quem de nós nunca cometeu os pecados descritos por Torrey, da desconcentração e do esquecimento de Deus na oração? E por que vez ou outra acontece assim conosco? Exatamente porque freqüentemente perdemos a perspectiva da presença de Deus antes de orarmos.

Antes de orar é preciso fazer como o salmista, se colocar diante do Senhor. Antes de orar é preciso estar no espírito dessa presença, e se aproximar de Deus com fé e convicção. Quando nos colocamos na presença de Deus, e nos encontramos face a face com Ele no lugar em que oramos, nossa oração não se perde no ar e nem falamos coisa com coisa. Se queremos orar corretamente, precisamos, antes de tudo, conseguir uma audiência com Deus. É preciso entrar em Sua presença.

Agora, o mesmo princípio da oração deve ser aplicável ao louvor e adoração do crente e em sua vida diária com Deus. Lembremos que Jesus ensinou que os verdadeiros adoradores são aqueles que o Pai procura para adorá-lo em espírito e em verdade (Jo 4.23). Isto significa que Deus deseja que os seus adoradores estejam verdadeiramente em sua presença. E o autor aos Hebreus descreve nossa responsabilidade neste particular do seguinte modo: Tendo,pois irmãos, intrepidez para entrar no Santo dos Santos, pelo sangue de Jesus, pelo novo e vivo caminho que ele nos consagrou pelo véu, isto é, pela sua carne, e tendo grande sacerdote sobre a casa de Deus, aproximemo-nos, com sincero coração, em plena certeza de fé, tendo o coração purificado de má consciência e lavado o corpo com água pura. Guardemos firme a confissão da esperança, sem vacilar, pois quem fez a promessa é fiel. Consideremo-nos também uns aos outros, para nos estimularmos ao amor e às boas obras. Não deixemos de congregar-nos, como é costume de alguns; antes, façamos admoestações e tanto mais quanto vedes que o Dia se aproxima (Hb 10.19-25). A Bíblia Almeida Revista e Atualizada dá a esta passagem o sugestivo título: O privilégio de acesso dos crentes à presença de Deus.

Dentre tantas coisas boas que o autor aos Hebreus nos fala, fica evidente que para uma aproximação correta de Deus é preciso a sinceridade de um coração humilde e agradecido diante do Senhor, além da pureza de espírito e fé. "De fato, sem fé é impossível agradar a Deus, porquanto é necessário que aquele que se aproxima de Deus creia que ele existe e que se torna galardoador dos que o buscam" (Hb 11.6).

Viver na presença de Deus dia-a-dia deve ser o ideal cristão. O próprio Deus havia ordenado a Abraão: "Anda na minha presença e sê perfeito". E acerca de Enoque é dito: "Andou Enoque com Deus e já não era, porque Deus o tomou para si" (Gn 5.24).

Meu irmão, minha irmã, prepare-se para estar diante de Deus. Certifique-se, antes de sua oração ou de qualquer ato de adoração a Deus, se você realmente está na presença do Senhor . Não ouse orar ou cantar louvares a Deus se ainda não estiver certo de estar na presença desse Deus que está sempre com você.

Estar na presença do Senhor é muito mais que uma convicção gerada por nossos falíveis sentimentos. É a certeza da fé que toca o coração de Deus.

(*)O mesmo relato também aparece,
com pouquíssimas variações, em 2Samuel 7.

Rev. Josivaldo de França Pereira - Pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil (I.P.B.) em Santo André - SP. Bacharel em teologia pelo Seminário Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição (J.M.C. - SP), Licenciado em filosofia pela F.A.I. (Faculdades Associadas Ipiranga - SP) e mestrando em missiologia pelo Seminário Teológico Sul Americano (S.T.S.A.) em Londrina - PR.

http://www2.uol.com.br/bibliaworld/igreja/estudos/at020.htm