PERSPECTIVA BÍBLICO-TEOLÓGICA
Mauro F. Meister
No primeiro número de Fides Reformata apresentei um artigo sobre a necessidade da pregação do Antigo Testamento.1 Essa apresentação se deu como fruto da constatação de que se prega muito pouco o Antigo Testamento em nossas igrejas, e que, quando se prega, com raras exceções, usa-se o texto como um pretexto. No artigo defendi a necessidade de uma abordagem mais eficiente da teologia bíblica do Antigo e Novo Testamentos como uma só disciplina que não deve ser quebrada em diversas subdisciplinas autônomas. Esta teologia deve refletir o caráter da unidade bíblica.
No presente artigo gostaria de expor de forma técnica, porém acessível, o texto do Salmo 133, bastante conhecido pelo povo evangélico na sua forma, porém, com um significado um pouco obscurecido por duas razões: a distância sócio-cultural que nos separa do Antigo Testamento e o desconhecimento do próprio Antigo Testamento com relação à teologia bíblica. Este artigo, portanto, se propõe a ser uma aplicação prática do primeiro artigo, um exercício hermenêutico em um texto que, numa primeira leitura, superficial, parece ser de simples interpretação, mas que, no entanto, trouxe dificuldades a intérpretes do passado.
Ainda mais, este texto traz uma mensagem muito relevante para o povo de Deus no momento atual, quando interpretado dentro do contexto bíblico-teológico adequado. É parte da pressuposição deste autor que o texto do Salmo 133 (assim como toda a Escritura) faz parte da revelação progressiva de Deus na história. A interpretação e suas implicações contribuem com a teologia bíblica, e esta, por sua vez, é refletida no texto. Portanto, perguntamos ao interpretar o texto em que ele contribui para a teologia bíblica como um todo, e como ele reflete esta teologia. Ainda mais, é parte de nossa pressuposição que estas relações do texto com a teologia podem ser percebidas através da interpretação e aplicação do texto sem forçar ou distorcer o seu significado original.
I. Erros Comuns na Interpretação do Salmo 133
Antes de expor o texto propriamente dito, exemplificaremos rapidamente alguns erros de interpretação do mesmo. Dois destes erros são os mais comuns: a pressa em aplicar o texto ao Novo Testamento, sem antes entende-lo à luz do seu próprio contexto e o medo de aplicar o texto temendo cometer um "abuso hermenêutico" como foi feito em abundância no passado. Seguem-se alguns exemplos destes erros e alguns outros.
Agostinho, por exemplo, nas suas exposições do livro de Salmos, aplica o texto "quão bom e agradável é viverem unidos os irmãos" a certas circunstâncias neotestamentárias, como a união entre judeus e gentios e a união entre os apóstolos e a comunidade cristã descrita em Atos 2. No entanto, seu principal ponto na exposição do salmo é a defesa da vida monástica. Agostinho também interpreta detalhes do texto como "a barba" como sendo um sinal de maturidade e coragem. Quando muito, devemos considerar a interpretação de Agostinho uma aplicação alegórica.2
Jerônimo segue uma linha semelhante à de Agostinho, defendendo a vida monástica. Ele diz que a unidade proposta pelo salmo só pode ser alcançada na vida monástica, e que é impossível em qualquer outra circunstância. Comentando o verso 2 ele afirma:
Habilmente dito: "sobre a cabeça". E "o qual desce para a barba." A barba é o sinal de hombridade porque por este sinal a natureza distingue o homem da mulher. A cabeça simboliza a divindade, ou seja, Deus Pai; a barba designa o homem. "Até" dizem as Escrituras "que cheguemos … à perfeita varonilidade," isto é, Cristo. Agora vejam o que o profeta quer dizer com: "É como o óleo precioso." Assim como as bênçãos do precioso óleo da cabeça – ou seja, do Hermon da divindade – desce sobre a barba, desce sobre o homem perfeito que é Cristo, daquela mesma barba o mesmo precioso bálsamo desce para a gola de suas vestes … Qual é o benefício para nós desta barba que foi ungida e deste perfeito homem? … Se nós somos a veste de Cristo, nós vestimos a sua nudez com nossa fé …3
Entre os intérpretes reformados nós encontramos Lutero, que embora não comente o Salmo 133, refere-se ao mesmo na sua interpretação do Salmo 42 verso 6. Dando uma explicação etimológica para o nome Jordão, Lutero afirma que "misticamente este denota o batismo na igreja e nas Santas Escrituras, no qual todos os cristãos são banhados." Mais impressionante é sua interpretação de Hermon:
O Hermon denota anátema, excomunhão, e a Cristo é dado este nome no Salmo 133.3: "como o orvalho do Hermon," porque Cristo foi feito pecado, maldição, excomunhão e anátema por nós. Logo, todos os cristãos são Hermonin, que é o plural de Hermon, porque eles também são o refugo, obscuridade e anátema do mundo (1 Co 4.13), como diz o apóstolo (Gl 6.14).4
Calvino, muito mais centrado no método histórico-gramatical de interpretação, não está livre de alegorizações na sua interpretação. Ele diz: "Pela barba e gola das vestes nós somos levados a entender que a paz que vem de Cristo, como o cabeça, se espalha através de todo o comprimento e largura da Igreja."5
Alguns estudiosos, utilizando-se do método crítico-histórico, têm grandes dificuldades em entender o texto e propõem emendas ao mesmo, no sentido de "melhorá-lo" dentro da sua própria perspectiva. Como exemplo, Kraus no seu comentário de Salmos sugere a seguinte tradução: "o orvalho de Hermon que desce aos campos secos." Sua justificativa para tal emenda é que a tradução "sobre os montes de Sião" é topograficamente impossível e também absurda, "num fantasioso estilo poético."6
Vemos, portanto, que existem muitas interpretações diferentes do texto. Sem sombra de dúvidas, muitos intérpretes trouxeram grande luz sobre o texto no passado e, ao interpretarmos o salmo, faremos recurso a estas interpretações.
II. Contexto Histórico
O título, usualmente traduzido como "Cântico das Subidas," é relacionado a um grupo de cânticos usado por peregrinos nas procissões festivais.7 É nele que encontramos a indicação mais lógica do provável contexto histórico do nosso texto — dÛiwñfd:l twèolA(aM×ah ryÛi$ (Cânticos das Subidas – de Davi). O Texto Massorético traz este título para o grupo de Salmos 120 a 134. Alguns acreditam que o título pertencia primeiramente ao grupo como um todo e depois foi aplicado aos textos individuais. Interessantemente, os Salmos 122, 124, 131 e 133 são associados ao nome de Davi, enquanto que o 127 é associado ao nome de Salomão.
É bom lembrar que a maioria dos comentaristas bíblicos (inclusive um grande número de intérpretes conservadores) põe em dúvida a autenticidade dos títulos no Texto Massorético. No entanto, para este texto específico existe bastante evidência de que ele vem de tradições muito antigas. Comentaristas usam dois argumentos principais contra a autoria davídica do texto.
Primeiro, eles alegam que a LXX e o Codex Vaticanus omitem o título e isto é considerado evidência suficiente para negar a historicidade do mesmo. No entanto, existem outras fontes de evidência contra este ponto de vista. O título aparece no Codex Alexandrinus e em textos de Qumran. O texto 11QPs13 preserva o grupo twèolA(aM×ah ryÛi$, colocando os Salmos 133 e 134 em outra posição. Ainda assim, mesmo isolados do grupo, os dois textos trazem o título completo.8
Outro argumento contra a autoria davídica segundo Delitzsch, é de natureza filológica. Delitzsch afirma que o pronome relativo $ com o particípio (d"rïYe$) não era usado na era davídica, e passou a ser usado somente mais tarde.9 Na verdade, a construção pronome relativo + particípio aparece somente 7 vezes em todo o Antigo Testamento, sendo duas no Salmo 133, uma no Salmo 135, uma em Cantares e três em Eclesiastes. Ainda que estes outros escritos sejam evidentemente posteriores ao período davídico, a ausência da construção em outros escritos anteriores não é evidência suficiente para se desacreditar da autoria davídica.10
Temos, portanto, mais evidência textual para crer na autoria davídica do que para desacreditar dela. Ainda mais, existem possíveis Sitze im Leben que se encaixam perfeitamente na teologia do salmo. Algumas sugestões interessantes são apresentadas por estudiosos. Kirkpatrick faz a conexão do salmo com a tentativa de Neemias de repovoar Jerusalém após o exílio babilônio.11 Tal possibilidade é válida, ainda que não seja esta a origem do salmo. Delitzsch afirma que o salmo é atribuído a Davi porque "este exala inteiramente o espírito de Davi, e se pensa que este [o salmo] nasceu do amor de Davi por Jônatas".12 Como o título afirma, o salmo também era usado nas romarias do israelitas (Cântico das Subidas), provavelmente na festa dos tabernáculos (Lv 23.33-43), quando todo o povo deveria viver em tendas.
O contexto mais provável, no entanto, é o da unificação das doze tribos de Israel debaixo do reinado de Davi em Jerusalém. As figuras no texto do salmo confirmam ascendentemente esta situação. Considerando pois este contexto, é que vamos interpretar o texto.
III. Estrutura Textual
O texto, ainda que seja uma pequena unidade literária, possui uma clara estrutura que precisa ser considerada na sua interpretação. Adele Berlin usa a expressão "corrente de palavras", que na minha opinião melhor caracteriza a unidade do texto.13 Ela descreve a corrente no Salmo 133 da seguinte forma:
v. 1 bO+ bom
v. 2 bO+ah precioso
v. 2 la( d"roy descendo sobre
la( d"roYe$ que desce
v. 3 la( d"roYe$ que desce
O adjetivo bO+ (bom) no verso 1 é ligado à expressão bwío=ah }emÜe
IV. Interpretação
É importante nesta seção separar de forma consciente a interpretação do texto no seu contexto original, da aplicação do mesmo no contexto da teologia bíblica. Estes são dois passos distintos, porém, inter-relacionados. A intenção de mantê-los distintos é com vistas a manter a integridade hermenêutica, sem nos apressarmos a conclusões que não estão claramente expressas no salmo. Uma vez entendido o texto dentro de seu contexto, podemos passar a aplicá-lo.
O verso 1 declara o propósito temático do salmo. Sendo um hino de uso no culto público, este exalta o valor da unidade do povo de Deus no contexto do reinado teocrático de Davi. Alguns comentaristas entendem a expressão "viverem unidos os irmãos" como uma manifestação da cultura antiga onde várias famílias viviam debaixo do mesmo teto. Porém, tal idéia não se pode aplicar ao texto, principalmente considerando que este vem de Davi. Sabemos pela narrativa bíblica que a unidade familiar não foi o forte na vida deste rei. Portanto o termo "irmãos" ({yØixa)) do verso 1 só pode se referir ao povo de Israel como um todo, ou mais provavelmente, como veremos nas figuras de linguagem dos versos 2 e 3, à unidade das doze tribos de Israel. Confirmando este argumento aparece a expressão dax×fy tebÙe$ (viverem juntos) que, nas três outras instâncias em que aparece no Antigo Testamento, claramente refere-se à possessão de terras. Uma rápida referência aos textos de Gênesis 13.6; 36.7 e Deuteronômio 25.5 nos mostra isto.
Os dois primeiros textos (Gn 13.6; 36.7) relatam as separações de Abraão e Ló e Jacó e Esaú, causadas pela impossibilidade de viverem numa única região. A terra não poderia sustentá-los juntamente. O texto em Deuteronômio 25.5 não menciona a "terra" de forma clara. No entanto, esta passagem sobre as obrigações maritais para com a viúva de um irmão, não se refere somente a irmãos que vivem debaixo de um mesmo teto, mas certamente a irmãos que vivem debaixo de uma mesma autoridade. Os versos seguintes deixam esta idéia clara quando mencionam "Israel", "anciãos", "suscitar a seu irmão nome em Israel", "cidade", etc. Todas estas expressões são evidência de que o texto se refere a irmãos que vivem debaixo de uma unidade nacional ou tribal.
Por estas razões, a expressão dax×fy-{aG {yØixa) tebÙe$ (habitarem unidos os irmãos) nos dá uma direção natural para interpretar o texto: o verso se refere à unidade do território de Israel. O salmo é uma expressão da bênção da unidade no reino davídico, prefigurando a bênção do reinado de Cristo. A bênção da unidade é relatada na expressão "bom e agradável". 14
Portanto, o verso 1 é uma expressão da bênção alcançada na união das doze tribos sob o reinado de Davi, após o problemático reinado de Saul. As figuras nos versos 2 e 3 são as aplicações diretas desta expressão de louvor.
A figura no verso 2 expressa a unidade das doze tribos debaixo do serviço sacerdotal providenciado por Deus para o povo de Israel. Freqüentemente encontra-se em comentários uma ênfase na interpretação dos elementos individuais do texto como o óleo, a barba e o adjetivo "bom", esquecendo-se da figura completa que o verso apresenta e que deveria ser algo imediatamente absorvido e entendido pelo auditório original do texto, o povo israelita: a bênção do sacerdócio para o povo.
A expressão }eme
Lendo a respeito da instituição do sacerdócio em Israel vemos que esta é a forma que Deus escolheu para abençoar o seu povo, para redimi-lo do seu pecado, para aceitá-lo na sua presença. Dentre as doze tribos Deus escolheu uma para exercer este ministério. Uma tribo abençoaria a si mesma e a todas as demais. Porém, o sacerdócio era prejudicado quando havia divisões entre as tribos, e efetivado na sua unidade. Sob o reinado de Davi o sacerdócio cumpria a plenitude de suas funções sobre o povo de Israel. Jerusalém foi estabelecida como capital política, e mais tarde, espiritual de toda a nação (2 Samuel 6). Esta situação singular estava certamente nos planos de Deus para abençoar seu povo. A descendência de Aarão foi usada por Deus naquela época típica do reinado do Messias para abençoar a Israel.
Interessantemente, como sugere Kirkpatrick,16 o colar da veste do sumo sacerdote carregava duas pedras de ônix onde estavam inscritos os nomes das doze tribos (Ex 28.9-10). Na unção, não só o sacerdote era ungido, mas também aqueles que ele representava. O óleo descia da cabeça sobre a barba e sobre o colar das vestes, onde estavam representadas as doze tribos de Israel. Somente na unidade é que todo o Israel poderia receber o exercício do sacerdócio. A contínua expiação pelo pecado dependia da unidade do povo de Deus.
O verso 3 traz uma nova e interessante figura. Como no verso 2, uma comparação é introduzida pela preposição k: "Como o orvalho do Hermon, que desce sobre os montes de Sião." A comparação não se concentra no "orvalho do Hermon," mas nos resultados do "orvalho do Hermon que desce sobre os montes de Sião". Assim como foi necessário conhecer um pouco do contexto sacerdotal para se entender a figura de linguagem no verso 2, é necessário um pouco de conhecimento de geografia para se entender a figura do verso 3. O monte Hermon ficava no extremo norte de Israel e era bem conhecido pelos efeitos que seu orvalho produzia (e produz até hoje). Porque o monte Hermon é muito alto e seu cume coberto de neve, o seu pesado orvalho "rega" toda a região em volta fazendo da mesma uma área muito fértil e produtiva. O contraste entre Hermon e Sião é extremo: enquanto o primeiro representa vida por sua situação geográfica, Sião é a fronteira do deserto, que é símbolo de morte, de sequidão. A partir de Sião na direção sul só se encontra terra seca, sem vida. Enquanto a região do Hermon é rica em águas, a região do Negueve (ao sul de Sião) depende de cursos temporários de água que vêm das montanhas após as chuvas mais ao norte. No mais, encontra-se o Mar Morto, que, por seu alto grau de salinidade, não suporta nenhum tipo de vida.
Toda sorte de interpretação já foi dada a esta figura. Comparam-se, por exemplo, as figuras geográficas do verso 3 com o corpo humano no verso 2 (cabeça/barba/colar com Hermon/Sião, o óleo com o orvalho, etc.).17
Creio, porém, que Davi se utiliza do recurso poético que analisamos anteriormente para demonstrar o significado pleno de ambas as figuras de linguagem. O verbo dry (descer) parte da corrente de palavras na estrutura do texto, é fundamental para as figuras. Primeiro, o verbo, que aparece três vezes no texto, está no particípio, expressando uma idéia de continuidade, a continuidade da bênção no sacerdócio sobre Israel. Segundo, o verbo dry (descer) é que faz a ligação das figuras entre os versos 2 e 3.
Como já vimos, Hermon e Sião são dois extremos, dois polos geográficos que representam a unidade norte/sul de Israel. Porém existe ainda uma figura mais marcante por traz do verbo dry. Hermon e Sião, sendo tão distantes fisicamente (nas proporções da geografia do antigo Oriente Próximo), possuem um elo comum, o rio Jordão. Este corre desde o norte até o sul de Israel morrendo no Mar Morto. O nome Jordão (}¢D:ráy) provavelmente deriva-se do verbo dry sendo então "o que desce".18 Uma das fontes do rio Jordão é exatamente um ribeiro chamado Banias, que nasce na base do monte Hermon. De certa forma, a riqueza de vida do Hermon se faz presente em toda a extensão de Israel até as proximidades de Sião. Aquele "que desce" (como o óleo descendo … que desce … que desce) traz bênção sobre todo Israel.
A segunda parte do verso 3 é introduzida pela partícula yiK (porque), seguida de um advérbio de lugar referindo-se a Sião ("porque lá Iahweh ordena a bênção"). Ainda que o norte abençoe todo o Israel, é no sul que Iahweh ordena a bênção. Em Sião é que estão as bênçãos espirituais para todo Israel. Em Sião Iahweh estabeleceu o seu rei e o seu sacerdote, dois ofícios de bênção para todo o povo, na unidade. Ambos servem como verdadeiros mediadores, escolhidos de Iahweh. Qual é a bênção prometida? "Vida para sempre."
Berlin conclui sua interpretação da seguinte forma:
O país inteiro é retratado com um rosto sacerdotal: do Hermon a Sião, da cabeça ao corpo. E para voltar à equação dos versos 2 e 3, a terra é ungida com o orvalho assim como Aarão é ungido com o óleo da consagração. O país não é somente unido, é também abençoado. O ponto focal da santidade e bênção é Sião, porque lá o Senhor ordenou a sua bênção para sempre.19
V. Aplicação
Com raros pontos de exceção, até agora nos concentramos em interpretar o texto no contexto original. Depois de feita esta interpretação cabe-nos perguntar quais são as implicações teológicas do Salmo 133 no contexto da revelação bíblica.
Primeiramente, o texto se relaciona com o contexto do reinado davídico e dentro deste contexto manifesta aspectos das bênçãos redentivas que Deus ordena para seu povo. Davi tinha consciência da importância da unidade nacional das tribos de Israel. O povo não poderia ser abençoado na divisão por dois motivos simples: sem um rei não haveria vitória e paz, e sem um sacerdote que ministrasse a todo o povo eles não teriam condições de se aproximar de Deus. O papel do reino é de fundamental importância: "O reino davídico serve dentro da esfera do próprio reinado de Deus."20 Tanto o rei quanto o reino e o sacerdócio são tipos de um reinado futuro. O texto manifesta o reconhecimento da necessidade de um reino e sacerdócio mediatorial. Sem estes não há bênção.
Este conceito estende-se para o povo de Deus na era do Novo Testamento: "Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus…" (1 Pe 2.9). Vimos no texto que a bênção era condicionada à unidade, e prejudicada sem ela. A mesma relação permanece para o povo de Deus hoje? Creio que sim, guardadas as devidas proporções. O povo de Deus é uma nação santa e exerce um sacerdócio que é abençoado na unidade. Esta unidade se expressa à medida que o povo de Deus, sua Igreja, como agente do seu reino, se submete à autoridade do Rei, sua lei e seu ensino, sem se desviar, sem comprometer sua verdade. Nesta unidade, Iahweh ordena a sua bênção. Creio que esta é a aplicação fundamental do texto para nossos dias.
A pergunta que permanece é se ainda outros elementos do texto podem ou devem ser aplicados no contexto neotestamentário, como por exemplo, o óleo ser comparado com o Espírito Santo. Seria legítima esta aplicação do Salmo 133? Ainda que este seja o primeiro impulso do intérprete com um conhecimento geral das Escrituras, tal aplicação sem uma formulação adequada pode levar a erros de interpretação tais quais os mencionados no início deste artigo.
Sabemos que a unidade do povo de Deus se dá debaixo da obra e poder do Espírito Santo, e da mesma forma como o povo de Israel era abençoado na unidade nacional, o povo de Deus é abençoado na unidade espiritual, quando com unanimidade, em um só Espírito, uma só fé, nos aproximamos do único Senhor.
Fala-se muito na igreja contemporânea a respeito de unidade, e não há como negar diante da interpretação deste salmo que a bênção de Deus vem sobre seu povo unido. Entretanto, é importante reconhecermos que, assim como a unidade de Israel se dava, em vários níveis (social, cultural e espiritual) debaixo de princípios claros da Escritura, a igreja do Senhor deve buscar esta unidade sob princípios semelhantes, que reflitam a verdade da Escritura e seus princípios básicos de autoridade.
Notas
1 Mauro Meister, "Pregação no Antigo Testamento: É Mesmo Necessária?", em Fides Reformata 1/1(1996) 1-5.
2 Agostinho, Expositions on the Book of Psalms, em Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church, volume VII (Grand Rapids: Eerdmans, 1983) 622-624.
3 The Homilies of Saint Jerome, em The Fathers of the Church, A New Translation by Sister Marie Ewald (Washington, D.C.:The Catholic University of America Press, 1963) 334-336.
4 Martin Luther, First Psalm Lectures, em Luther’s Works, ed por Hilton C. Oswald (Saint Louis: Concordia, 1986) 195.
5 John Calvin, Commentary in the Book of Psalms, trad. por James Anderson (Grand Rapids: Baker, 1981) 165.
6 Hans-Joachim Kraus, Psalms 60-150, A Commentary, trad. por Hilton C. Oswald (Minneapolis: Ausburg/Fortress, 1989) 484.
7 Esta posição é comum e defendida por Calvino, Leupold, Delitzsch, Allen e Kirkpatrick.
8 Gerald Henry Wilson, The Editing of the Hebrew Psalter, SBL Dissertation Series 76 (Chico, CA: Scholars Press, 1985) 130.
9 Franz Delitzsch, Biblical Commentary on the Psalms, trad. por Francis Bolton (Edinburgh: T. & T. Clark, 1871).
10 E. Y. Kutscher, em A History of the Hebrew Language (Jerusalem: Magnes Press, 1982) afirma que o uso da partícula é encontrado primeiramente no hebraico israelita do norte, depois no hebraico bíblico mais tardio, substituindo r#), e finalmente no hebraico da Mishnah. No entanto não podemos tirar uma conclusão desta afirmativa, porque os pressupostos de Kutscher são opostos aos nossos.
11 A. F. Kirkpatrick, The Book of Psalms (Cambridge: University Press, 1903) 770.
12 Delitzsch, Biblical Commentary on the Psalms, 317.
13 Adele Berlin, "On the Interpretation of Psalm 133", em Directions in Biblical Hebrew Poetry, ed. por E. Follis, JSOT, 40 (Sheffield Academic Press, 1987) 141-147. Berlin reconhece que o "fenômeno de repetição de um item léxico é um conhecido artifício de coesão," (p. 146).
14 Berlin em "On the Interpretation of Psalm 133," considera este Salmo uma expresão escatológica. Ela diz: "O Salmo expressa a esperança da unificação do norte e do sul, com Jerusalém sendo a capital de um reino unido" (p. 145). Dois fatores levam Berlin a esta conclusão: seus pressupostos judaicos e a data avançada que ela crê que o Salmo foi composto.
15 Na aplicação veremos que a figura do óleo é importantíssima, principalmente à luz do Novo Testamento. No entanto, para exercitarmos uma hermenêutica sadia, precisamos primeiro entender o texto no seu próprio contexto.
16 Kirkpatrick, The Book of Psalms, 771.
17 Ver as conclusões de Berlin em "On the Interpretation of Psalm 133," 145.
18 Ver Laird Harris, Gleason Archer e Bruce Waltke: }dry em Theological WordBook of the Old Testament (Chicago: Moody Press, 1980) 401-402.
19 Berlin, "On the Interpretation of Psalm 133," 145.
20 John H. Eaton, Kingship and the Psalms (London: SCM Press, 1976) 135.
Mauro Fernando Meister, ministro presbiteriano, mestre em Teologia Exegética do Antigo Testamento pelo Covenant Theological Seminary, nos Estados Unidos, e doutor em Línguas Semíticas (hebraico) pela Universidade de Stellenbosch, África do Sul. É coordenador do Departamento de Teologia Sistemática e professor na área de Antigo Testamento no Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper e no Seminário Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição, em São Paulo.
http://www2.uol.com.br/bibliaworld/igreja/estudos/at005.htm