Lição 2... O STRESS E A ESPIRITUALIDADE INTEGRAL Ed René Kivitz


 Stress e espiritualidade Um homem completo Um jeito de orar Uma oração A tradição meditativa O homem é mais do que uma máquina bio-psíquica. Você é muito mais do que um organismo com vontades, sentimentos e inteligência. Este muito mais é chamado de espírito, a dimensão do ser que transcende a matéria, o tempo e o espaço. O apóstolo São Paulo falava nos seguintes termos:
Por isso, não desanimamos; pelo contrário, mesmo que o nosso homem exterior se corrompa, contudo o nosso homem interior se renova de dia em dia. Porque a nossa leve e momentânea tribulação, produz para nós eterno peso de glória acima de toda comparação, não atentando nós nas coisas que se vêem, mas nas que se não vêem; porque as que se vêem são temporais, e as que senão vêem são eternas.1 Este “homem exterior” é o que chamamos de corpo e mente. Está sujeito aos desgastes naturais do tempo. Adoece, envelhece, se enfraquece, fica senil. Ele é instintivo e reage às circunstâncias tentando sobreviver: tem fome, e come, tem sono, e dorme, tem apetites e desejos, e se atira alucinado em busca de satisfação imediata.
1 Segunda Epístola de São Paulo aos Coríntios 4.16-18 2 Evangelho Segundo São Mateus 26.41 3 Evangelho Segundo São Lucas 17.21 4 Evangelho Segundo São João 14.6
Mas o “homem interior” é transcendente. Está destinado e equipado para ir além dos limites bio-psíquicos. Quando Jesus disse que “o espírito está sempre pronto, mas a carne é fraca”2, estava se referindo a estas duas dimensões: o homem interior (espírito) e exterior (carne). Jesus disse também que “o reino de Deus está dentro de vós”3, isto é, não é experimentado na dimensão bio-psíquica, mas na dimensão espiritual. Esta dimensão espiritual é a realidade última do ser. Conforme disse Stephen Covey, autor de Sete hábitos das pessoas muito eficientes, “não somos seres humanos passando por uma experiência espiritual, somos seres espirituais passando por uma experiência humana”.

UM HOMEM COMPLETO
Se houve um homem que transitou naturalmente pela dimensão espiritual, e dedicou sua vida a fazer com que as pessoas encontrassem o mesmo caminho, este homem foi Jesus. Jesus afirmou ser ele mesmo o caminho: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida, ninguém vem ao Pai senão por mim”.4 Jesus foi o homem completo. Na verdade, Deus encarnado: 100% Deus; 100% homem. Mistério divino. Para um observador do estilo de vida de Jesus, conforme descrito nos Evangelhos, duas coisas chamam especial atenção. Em primeiro lugar, o fato de que ele jamais esteve contido nos limites do mundo mental e material, ou bio-psíquico. Jesus curou doenças e enfermidades das mais diversas, andou sobre as águas, multiplicou pães e peixes, fez parar de chover, exerceu domínio sobre espíritos opressores, e até mesmo ressuscitou pessoas. O trânsito de Jesus no meio das multidões era admirável. Conseguia andar no meio da massa sem perder de vista o indivíduo. Jesus não apenas montava e desmontava “legos mentais” em si mesmo, mas também e principalmente conduzia as pessoas neste processo extraordinário de transformação pessoal. Sabia perfeitamente chegar ao âmago daqueles que dele se aproximavam. Foi assim com Zaqueu, portador de uma deficiência física, rejeitado socialmente, desonesto, e culpado de traição do povo judeu, tendo sido cooptado por Roma para cobrar impostos de sua própria gente. Zaqueu é um homem abalado em sua auto-estima, que tenta se superar enriquecendo e acaba consumido pela ganância, vendendo sua alma pelo poder econômico para superar seu senso de rejeição. 2  
O Evangelho Segundo São Lucas5 registra o dia quando Zaqueu subiu em uma árvore, se expôs ao ridículo público, na tentativa desesperada de ver Jesus passar. Jesus percebeu a cena, parou o cortejo, ordenou que Zaqueu descesse da árvore e se convidou para jantar na casa dele. A multidão ficou confusa pelo fato de que Jesus escolhera “a casa errada” para ficar hospedado: a casa de um pecador. O constrangimento de Zaqueu foi tão grande que se comprometeu a dar aos pobres metade dos seus bens e restituir quatro vezes mais todas as pessoas que por ele haviam sido lesadas. Para um homem cujo alicerce existencial era o dinheiro, a disposição de abrir mão da riqueza acumulada é a maior evidência de um “lego mental” foi substituído.
5 Evangelho Segundo São Lucas 19.1-19 6 Evangelho Segundo São João 4.1-30 7 Evangelho Segundo São João 7.37-39 8 Evangelho Segundo São João 20.31; 21.25 9 Evangelho Segundo São Mateus 4.1 10 Evangelho Segundo São Mateus 14.13 11 Evangelho Segundo São Mateus 14.23 12 Evangelho Segundo São Marcos 1.35 13 Evangelho Segundo São Lucas 11.1
João, o quarto evangelista, conta a história de uma mulher de Samaria.6 À beira do poço, tirando água, é interpelada por Jesus. “Dá-me de beber”. “Como, sendo tu judeu, pedes de beber a uma mulher de Samaria?”, indaga a mulher sabedora da inimizade radical entre judeus e samaritanos. “Se conheceras o dom de Deus, e quem é aquele que fala contigo, tu lhe pedirias e ele te daria água da vida”, responde Jesus enigmaticamente.
A mulher fica confusa e Jesus lhe explica que não está falando da água do poço, mas do Espírito Santo, “uma fonte de água viva que jorra do interior”.7 Jesus está falando de conexão espiritual, e a mulher está pensando na dimensão bio-psíquica, pois diz: “Dá-me desta água, para que eu não precise mais vir buscá-la”. Fica nítido que esta mulher ainda não desceu, ou subiu, às dimensões do espírito, e Jesus traz a conversa para a dimensão onde ela se encontra: “Onde está teu marido?”, pergunta Jesus. “Eu não tenho marido”. “Isto disseste com razão, pois cinco maridos já tiveste e o que tens agora não é teu marido”. A mulher se espanta, reconhece Jesus como profeta e se mete numa discussão teológica sobre o lugar certo da adoração: o lugar dos judeus ou o lugar dos samaritanos. Jesus não se deixa levar por esta tentativa de desviar a conversa e pega esta ponte da adoração para esclarecer à mulher que “deus é espírito, e importa que os seus adoradores o adorem em espírito e verdade”. Jesus está diante de uma mulher com apetites interiores que imagina poder satisfazer através de romances. Está presa aos limites de suas emoções feridas e seus instintos carentes de afeição genuína. Não consegue se abstrair do universo bio-psíquico. Jesus falava de água da vida e ela falava de água de poço. Jesus falava de sede espiritual enquanto ela corria atrás de satisfação emocional. Jesus falava de adoração espiritual e ela falava de lugares adequados para práticas religiosas. Finalmente, um “lego” é desmontado na cabeça daquela mulher e seu mundo é revirado de ponta cabeça quando ela consegue discernir em Jesus de Nazaré, o Messias esperado. Mais uma vez, Jesus facilita conexão espiritual, e joga alguém que vivia na superfície do “homem exterior” para as regiões abissais do “homem interior” que pode adorar a Deus em espírito.
Tantas outras histórias poderiam ser contadas a respeito de Jesus. João, evangelista, diz que “fez Jesus, diante dos discípulos, muitos outros sinais”, tantos que “se todos eles fossem relatados, creio que nem no mundo inteiro caberiam os livros que seriam escritos”.8
O segundo aspecto da vida de Jesus, também observado pelos discípulos, era sua constante preocupação em retirar-se para lugares desertos, a fim de ficar sozinho em oração: “Jesus foi levado pelo Espírito ao deserto”9, “Jesus retirou-se para um lugar deserto, à parte”10, “despedidas as multidões, subiu ao monte a fim de orar sozinho. Chegada à tarde, lá estava ele, só”11, “Tendo se levantado cedo, de madrugada, saiu para um lugar deserto, e ali orava”.12
Certa ocasião estava ele orando em lugar deserto; quando terminou, um dos seus discípulos disse: “Senhor, ensina-nos a orar”.13 Diante destas narrativas sobre a prática de oração de Jesus, montei o seguinte quebra-cabeça - fiz um lego. Em primeiro lugar, os discípulos observam atentamente este divino taumaturgo, capaz de transitar com a mesma naturalidade entre o universo material, mental e espiritual. Como dizia John Wimber, fundador de um movimento de igrejas cristãs chamado Vineyard, “Jesus era naturalmente sobrenatural”. 3  
Mas também, Jesus nunca pretendeu reter para si mesmo esta possibilidade de acesso e interação com o mundo espiritual. Ele disse aos seus discípulos: “em verdade, em verdade vos digo que aquele que crê em mim fará também as obras que eu faço, e outras ainda maiores, porque vou para junto do meu Pai”14
14 Evangelho Segundo São João 14.12 15 Evangelho Segundo São João 14.16-20 16 Evangelho Segundo São João 7.37-39 17 Evangelho Segundo São Lucas 4.18,19 18 Evangelho Segundo São Mateus 6.6-8
Mas, por que Jesus enfatizou que “vou para junto do meu Pai”? . Ele mesmo responde: “Eu rogarei ao Pai, e ele vos dará o seu Espírito, a fim de que esteja para sempre convosco, o Espírito da verdade, que o mundo não pode conhecer porque não o vê nem o conhece, mas vós o conheceis porque ele está convosco e habitará em vós.... Naquele dia, vós conhecereis que eu estou em meu Pai, e vós, em mim, e eu, em vós”.15 Em outra ocasião, Jesus disse aos discípulos: “Se alguém tem sede, venha a mim e beba. Quem crer em mim, como diz a Escritura, do seu interior rios de água viva fluirão do seu interior”. João, evangelista, explicou que “isso ele dizia a respeito do seu Espírito que haviam de receber os que nele cressem”.16
Estas palavras ecoaram nos ouvidos dos discípulos, que certamente fizeram conexão com a primeira declaração pública feita por Jesus, no início de sua peregrinação ministerial: “O Espírito do Senhor Deus está sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar libertação aos cativos e restauração da vista aos cegos; para por em liberdade os oprimidos e anunciar o ano aceitável do Senhor”.17 Em síntese, os discípulos compreenderam que Jesus transitava inclusive pela dimensão espiritual do universo porque estava em plena submissão ao Espírito Santo. Compreenderam também que este mesmo Espírito Santo seria dado a eles, os que criam em Jesus, de modo que pudessem fazer as mesmas coisas, e até maiores, que Jesus fazia. Mas os discípulos observaram, uma coisa em Jesus que poucas pessoas conseguem enxergar: havia uma profunda relação entre as obras que Jesus fazia, e os períodos de recolhimento de Jesus em oração solitária e intensa. Os discípulos conseguiram perceber que o segredo de Jesus estava naqueles retiros de oração, e por esta razão pediram: “Ensina-nos a orar”.

UM JEITO DE ORAR
“Tu, quando orares, entra no teu quarto e, fechada a porta, orarás a teu Pai, que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará. E, orando, não useis de vãs repetições, como os gentios; porque presumem que pelo muito falar serão ouvidos. Não vos assemelheis, pois, a eles; porque Deus, o vosso Pai, sabe o de que tendes necessidade, antes que lho peçais”.18 Quando Jesus ensinou seus discípulos a orar, estabeleceu um fundamento sólido, sem o qual a oração não passa de verbosidade frívola e desabafo. Em primeiro lugar, Jesus nos mostrou que orar é estar em comunhão com Deus, o Pai, e o Pai está além de nós. Jesus diz que “seremos vistos pelo Pai”. Orar é estar sob as vistas de Deus. O lugar secreto é o lugar onde Deus não apenas pode nos ver, as pode estar conosco. Quando você se recolhe para orar, você não está falando com você mesmo, fazendo um desabafo psico-emocional, ou elaborando pensamentos e sentimentos no divã de um deus suposto. As orações nos colocam diante de um interlocutor real e interessado em nós. Quando você está em oração, você está se dirigindo a uma outra pessoa além de você mesmo: você está em comunhão com o Pai. Este é o grande segredo da oração. Quem ora sem crer em Deus, não ora, elabora. Quem ora sem crer que Deus existe em termos pessoais e está à disposição para um relacionamento próximo, amoroso e consciente, na verdade, “fala de si para si mesmo”. Ou fala de si para o “Todo”, ou “Tudo”, que eqüivale a nada. Em segundo lugar, Jesus disse que a oração não é um ato mecânico, não se destina a gerar um “estado alterado de consciência”. Jesus advertiu que não devemos usar de vãs repetições, isto é, não devemos transformar a oração num mantra autônomo em relação ao todo do nosso ser. Existem algumas razões pelas quais a oração envolve a dimensão consciente do ser. Primeiro, enquanto estamos orando, nossa mente não pode ficar à deriva, exposta aos lobos de ocasião do mundo espiritual. Enquanto oramos, estamos diante de Deus, o Pai, e devemos rejeitar toda e qualquer interferência espiritual que não venha da parte de Deus. Nossas orações devem estar assentadas em crenças profundas, capazes de trazer à consciência os alicerces mais seguros para nossa caminhada em meio às turbulências do viver. 4  
Uma outra razão porque as orações não podem ser “vãs repetições”, é que a oração é um processo de desmontagem de “legos mentais”. Enquanto estamos orando, estamos diante da possibilidade de contemplar a realidade que nos leva a orar, de modo a evocar, pela oração, os recursos que restauram nossas memórias, inclusive emocionais. Toda vez que nos recolhemos para fazer uma releitura do mundo e do nosso universo interior, nos colocamos diante da oportunidade de refazer estruturas psíquicas, e recebermos de Deus novos patamares existenciais. A recomendação de Jesus sobre “não ficar repetindo a mesma coisa” pode ser interpretada de acordo com aquela expressão popular: “Vira o disco”, algo do tipo, abandone este discurso, desmonte este “lego de monstro” e deixe deus lhe dar novas imagens de paz e esperança. A oração é uma porta de acesso a novos processos, percepções e atitudes mentais e emocionais, possíveis em comunhão com o Pai. Jesus ensina também que a oração acontece numa dimensão de instrospecção: “vá para o seu quarto e feche a porta”. Quem permanece na dimensão do homem exterior, não consegue orar. Quem fica na superfície verbal e pública, não consegue orar. A oração acontece no quarto silencioso do homem interior, e não na automação da repetição verbal, nem mesmo no vazio da mente. Dizem os Rabinos que “a alma não consegue andar mais rápido do que um camelo”. Nesse caso, devemos parar de vez em quando para esperar a alma chegar. Isto é “fechar a porta do quarto”, buscando uma abstração do mundo cheio de pressa, barulho e multidões, tendo em vista a recuperação da sintonia entre corpo, mente e espírito com Deus, algo como promover o alinhamento entre o homem interior, o homem exterior, e Deus. Outro aspecto da oração de Jesus é que, apesar de ser cheia de conteúdo inteligente, a oração nos arremessa a uma dimensão de comunhão com Deus que transcende a razão: “O Pai que vê em secreto ...”. Note que a oração é, geralmente, identificada com expressão verbal. A maioria das pessoas entende que “orar é falar com Deus”. De fato, orar é falar com Deus, e não apenas para Deus. Este falar com Deus implica também em ouvir Deus. E ouvir Deus implica em silêncio. Mais do que isso, o silêncio na presença de Deus, sob a voz de Deus nos leva a patamares mais profundos de intimidade onde as palavras se tornam desnecessárias e inoportunas. Alguém já disse que “as palavras servem apenas para aplacar a efusividade do que é dito no silêncio”. Isso me faz lembrar de um diálogo da Madre Teresa de Calcutá. “O que a senhora diz para Deus em suas orações?” “Nada, eu só escuto”. “E o que Deus diz para a senhora em suas orações?” “Nada, Ele só escuta”. Esta é a verdadeira e mais profunda dimensão de oração: uma experiência de presença e comunhão espiritual, que transcende a análise e a verbosidade. Por esta razão Jesus diz que a oração é muito mais uma coisa que o Pai vê em secreto, em detrimento do que o Pai ouve. Finalmente, Jesus ensina que a oração abre caminhos para a intervenção de Deus: “o Pai que vê em secreto, recompensa”. Não tenha dúvidas, a oração leva você para além das possibilidades da mente e da matéria (bio-psíquico), e coloca você diante das infinitas possibilidades do mundo espiritual. Nossas orações alinham nossas corações e mentes com a vontade perfeita de Deus, e colocam os trilhos pelos quais ganhamos acesso aos recursos maravilhosos dos céus. Até porque, como já comentamos, orar não é tanto falar com Deus, mas sim “estar com Deus”, de modo a recebermos o que Ele deseja nos dar.
Jesus disse que, em seu nome, poderíamos pedir ao Pai o que precisássemos e ele nos atenderia.19 Evidentemente, há um sentido profundo no significado de “orar em nome de Jesus”, mas isso não invalida o fato de que orar é acessar recursos que transcendem as potencialidades e capacidades humanas.
19 Evangelho Segundo São João 15.16 20 Livro dos Atos dos Apóstolos 10.1,2 21 Livro dos Atos dos Apóstolos 10.31
A Bíblia fala de um homem, Cornélio, que jamais ouvira falar de Jesus, mas que “era piedoso e temente a Deus e que fazia muitas esmolas ao povo, e, de contínuo, orava a Deus”.20 Até que Deus vai ao encontro daquele homem. Cornélio tem uma visão espiritual quando um anjo lhe diz: “Tua oração foi ouvida, e tuas esmolas lembradas na presença de Deus”.21

A TRADIÇÃO MEDITATIVA 
Sempre me incomodou a razão pela qual Jesus ensinou uma oração, em vez de ensinar apenas um jeito de orar. Tendo dito que a oração jamais deveria se transformar em mera repetição, sua oração recitada tornou-se exatamente um modelo repetido exaustivamente, até mesmo sem muita consciência do que está sendo dito. 5  
Este fenômeno possui duas interpretações possíveis. A primeira, e mais simples, é que muitas pessoas realmente não entenderam o que Jesus pretendia. São pessoas que acreditam que a mera repetição é poderosa em si mesma, como se as palavras recitadas fossem mágicas, um tipo de “Abre-te Sésamo” para o mundo espiritual. Infelizmente, as coisas não funcionam assim, e muita gente permanece num primitivismo religioso, sem transcender na direção de Deus, apesar de repetir bastante a oração do Pai Nosso. Mas, existe uma outra explicação possível para o fato de Jesus ter ensinado uma oração específica, com um conteúdo elementar, que pode e deve ser interpretado. Nesse ponto, devemos inserir na prática da oração a tradição meditativa do oriente, certamente muito conhecida por Jesus. A meditação é um estado profundo de introspecção. A introspecção possui basicamente três estágios: concentração, contemplação e meditação. A concentração é a etapa da coleta de dados, cuja palavra chave é “atenção”. A contemplação é a etapa da harmonização dos dados, cuja palavra chave é “análise”. Quanto mais consciente de seus mapas mentais, e mais harmonizado o conjunto de dados que uma pessoa tem, maior a probabilidade de saúde e possibilidades de respostas equilibradas ao desafio de viver. Em outras palavras, para que uma pessoa possa viver em estado de equilíbrio, deve ser capaz de discernir, interpretar e administrar seus “legos mentais”. Posso lhe contar uma história que explica o que quero dizer. Certa fez, fiz uma visita pastoral a uma jovem senhora que acabara de chegar do consultório médico e tinha nas mãos os envelopes com os exames que aparentemente indicavam a progressão de um câncer. Seu discurso era circular e suas ações automatizadas: repetia sem parar as palavras literais do médico, além tirava os exames dos envelopes e tornava a guardá-los sem perceber seus movimentos. Sua postura mental era concentrada na informação do câncer. Sua grande necessidade era assimilar esta informação harmonizando-a com suas convicções mais profundas e outras informações arquivadas na mente. Aquela mulher possui um “lego mental” que precisava ser identificado e desmontado, para que perdesse seu poder estressante e destrutivo. Acredito que ela conseguiu. Exatamente agora, enquanto escrevo este texto, me alegro por ter em mente a imagem de uma mulher bem diferente daquela que estava atemorizada e sentindo-se traída por Deus. A imagem que tenho diante de mim é a de uma mulher valente, que decidiu viver. Não sei se o câncer ainda está, mas agora já não faz diferença, pois a fonte de sustentação daquela mulher transcendeu os limites bio-psíquicos.
Este processo de montagem e desmontagem de “legos mentais”, evidentemente, não é tão simples, por algumas razões. Primeiro, porque nem sempre estamos conscientes de sua existência. Isto quer dizer que em algumas situações não conseguimos identificar a razão e origem de nossas ações e sensações. Os cientistas modernos, como por exemplo, Joseph Ledux, da Universidade de New York, dizem que possuímos duas memórias, uma racional explícita e outra emocional implícita.22 Isso quer dizer que nosso cérebro faz registros de experiências emocionais que são ativados sem que tenhamos consciência. Toda vez que uma situação é percebida como ameaçadora à luz daquela memória emocional, reagimos instintivamente. Isso explica porque não sabemos porque temos medo de avião, aquela pessoa nos irrita ou determinada postura do cônjuge nos fere tanto. Em segundo lugar, não é sempre que conseguimos administrar nossos “legos mentais”. Isto é, conseguimos identificá-los, mas somos incapazes de gerir os seus efeitos. Não são poucas às vezes quando sabemos porque estamos ansiosos, mas mesmo assim, nossa ansiedade continua latente. Conseguimos até mesmo identificar os sintomas de uma depressão iminente, mas não temos forças para lutar contra ela. Rolamos na cama, com taquicardia, e não há nada que nos acalme senão uma boa dose “x”. Este “x” varia de pessoa para pessoa, mas geralmente trata-se de remédio mesmo. Imagino que já não preciso valorizar a necessidade de uma medicação adequada, mas quero insistir no fato de que, assim como regulamos a química cerebral, devemos aprender a montar e desmontar os “legos mentais”. Enfim, há ocasiões que, quanto mais nos dedicamos à reflexão e tentamos gerir nossos processos mentais, mais nos perdemos nos labirintos dos nossos pensamentos e emoções. Nesses momentos, devemos entrar num estágio mais profundo de introspecção. Os dois primeiros, concentração para identificar os dados, e contemplação para harmonizar os dados, não foram suficientes. Chegou à hora do terceiro estágio da introspecção, chamado de meditação. Dizem os mestres espirituais que “meditar é parar de pensar”, ou permanecer em quietude, sem reagir aos pensamentos, deixando que eles passem. A meditação transcende a análise. Nesse estágio de introspecção, a palavra chave é “revelação”. O silêncio da alma é o ambiente do insight. A rendição do homem exterior é o início do processo de conexão espiritual.
22 LeDux, Joseph, O cérebro emocional, Rio de Janeiro: Objetiva, 1998 6  
O processo de meditação se compara à observação de barcos que passam aos montes no leito do rio enquanto estamos sentados à margem. Aos poucos, os barcos vão rareando, cada vez passando mais esporadicamente, até que fica apenas o leito do rio. Cada barco é um pensamento, e quando aprendemos a criar um “estado alterado de consciência” favorável, deixamos nossos pensamentos fluírem a té que nos abstraímos deles e podemos então perceber os detalhes do rio e sua paisagem. Neste momento, nos abrimos para outras percepções sensoriais, como, por exemplo, enxergar uma casinha na outra margem do rio, ou ouvir o canto de um passarinho na árvore de trás. Da mesma forma, quando aquietamos o turbilhão de pensamentos que povoam nossa mente, criamos espaço para que alguma realidade ainda não percebida. A meditação abre a porta para realidades que transcendem a reflexão.
Conforme observou Fritjof Capra, “o conhecimento absoluto é uma experiência da realidade inteiramente não intelectual, uma experiência nascida de um estado de consciência não usual que pode ser denominado de „meditação‟ ou estado místico. A existência desse estado não tem sido testemunhada apenas por numerosos místicos orientais e ocidentais, mas aparece igualmente na pesquisa psicológica”.23 Capra compara o processo científico com estes três estágios da introspecção. O primeiro é a concentração para coleta de evidências. O segundo é a contemplação para a análise, que deve resultar na compreensão dos fenômenos observados, de modo a possibilitar uma formulação teórica. Acontece, porém, que estas formulações teóricas não resultam necessariamente da análise dos dados, mas surgem “espontaneamente”, quando o pesquisador está no banho ou passeando a beira mar. O processo científico não é completo sem estes insights repentinos que vêm de um estado de consciência não analítico, mas da totalidade do ser, que conversa consigo mesmo e com o mundo à sua volta numa dimensão supra-consciente. Todas as tradições espirituais possuem seus instrumentos facilitadores da meditação, este estado alterado de consciência, ou estágio profundo de introspecção. Os yoguis possuem seus mantras, os judeus possuem suas calabas, e os cristãos possuem suas orações. Isso explica as razões porque Jesus ensinou uma oração específica, que não deveria ser transformada em palavras mágicas constantemente repetidas, mas deveria sim oferecer o fundamento para assentamento da consciência.
23 Capra, Fritjof, O tao da física, Editora Cultrix, São Paulo: 1984, p. 31 24 Primeira Epístola de São Paulo aos Tessalonicenses 5.17 25 Epístola de São Paulo aos Filipenses 4.6,7 26 Evangelho Segundo São João 8.32 27 Evangelho Segundo São João 14.6 28 Evangelho Segundo São João 17.17
Acredito que Jesus teve boas razões para incluir uma oração específica quando ensinou o processo, ou jeito, de orar. Mapas mentais, “macro legos”, convicções profundas que se tornariam atitudes, posturas interiores, estados de consciência, são expressões que se harmonizam com a meditação. Jesus, na oração do Pai Nosso, oferece o universo dentro do qual podemos chegamos ao estágio de “orar sem cessar”24, pretendido pela meditação. Orar sem cessar é estar com a consciência fundamentada nestes “macro legos” oferecidos por Jesus. Isso faz sentido quando Jesus diz que a oração é muito mais comunhão de presença do que de diálogo. Jesus compreendia a oração muito mais na perspectiva de “estar com Deus” do que “ficar falando coisas para Deus”. O Pai Nosso não pode ser apenas orientação para discursos verbais, mas deve ser assimilado como base desta comunhão espiritual com Deus.
Mas, por que estes “macro legos” eram necessários? Jesus foi ao âmago de todo ser humano, afirmando respostas para seus conflitos mais essenciais. Mais do que harmonizar informações nos patamares mais profundos da consciência precisamos da comunhão com Deus para que Ele nos abençoe com seu amor cuidadoso. Conforme nos instruiu São Paulo, apóstolo, a paz de Deus, que recebemos em oração, “excede todo o entendimento”25, e esta paz é um estado de ser, ou de consciência, ou emocional, ou espiritual, como você preferir, porque na verdade, é tudo isso.
Essa paz é experimentada, não quando nossos fatores estressantes circunstanciais, bio-psíquicos são equacionados, mas justamente oferece o alicerce para tratarmos destes fatores estressantes. Essa paz que excede o entendimento é experimentada, não quando desmontamos nossos pequenos “legos de monstrinhos situacionais”, mas sim quando desmontamos nossos “macro legos” de conflitos espirituais, que afetam nossa essência última, e os substituímos por outras convicções, que não apenas neutralizam os velhos, mas também nos capacitam a viver: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”.26
Jesus chama a si mesmo de verdade.27 Mas, além disso, diz que “a sua palavra é a verdade”.28 Para aqueles que desejam encontrar a verdade que fornece o fundamento do relacionamento pessoal com Deus, Jesus ensinou, dentre outras coisas, uma oração.