Lição 4... O STRESS E A ESPIRITUALIDADE INTEGRAL Ed René Kivitz


 Pondo os pés no chão Três tipos de oração Textos sagrados Amizades espirituais Sozinho, em silêncio

PONDO OS PÉS NO CHÃO
Chegou à hora das perguntas mais importantes. Este é momento quando a teoria passa para a prática. Agora, começamos a colocar os pés no chão. Certamente você deseja saber como podemos cultivar a presença de Deus no corre-corre cotidiano? Ou como podemos cultivar estágios profundos de introspecção do tipo “orar sem cessar”, para que nossa integralidade bio-psíquica-espiritual seja preservada? A resposta a estas perguntas podem ser encontradas numa expressão grega antiga, usada para descrever a preparação dos atletas olímpicos: askesis. Os jogos olímpicos eram os eventos, enquanto as práticas de preparação eram askesis. Esta conceituação combina com a idéia das “práticas ascéticas” ou “disciplinas espirituais” cultivadas pelos místicos do passado. Muitas listas destas disciplinas espirituais foram preservadas historicamente, e ainda hoje beneficiam milhares de pessoas que as praticam. Minha experiência pessoal envolve algumas destas disciplinas, às quais recorro em momentos distintos, alternando as opções de acordo com minhas conveniências, necessidades, vontade e tempo. São recursos que uso para me manter “orando sem cessar” ou “andar com Deus desfrutando de sua companhia”. Quero sugerir pelo menos cinco disciplinas espirituais a titulo de primeiros passos na trilha da peregrinação espiritual. TRÊS TIPOS DE ORAÇÕES Pratique regularmente três tipos de orações: orações simples, orações auto-focalizadas e orações de intercessão. As orações simples as chamo assim porque não observam qualquer padrão ou elaboração. Acontecem espontaneamente, vindas de insights instantâneos, em qualquer lugar, a respeito de qualquer coisa, a qualquer hora.
Estas orações simples duram pouquíssimo tempo, quando no meio de minhas atividades diárias “me lembro” de que estou na presença de Deus e me dirijo a Ele com reverência e afeto. São “encontros” e vislumbres constantes com o Abba Pai. Nestes pequenos encontros ou small talks, acredito estar “santificando Deus em meu coração”, isto é, dando a Ele a primazia e o lugar de honra, trazendo sua presença para o centro das atenções e fazendo a sintonia fina de sua face que está sempre voltada para mim, mas que fica desfocada porque minhas lentes estão sujas, ou, como disse Jesus, “meus olhos não estão iluminados”.1
1 Evangelho Segundo São Mateus 6.22,23 2 Livro dos Salmos 42.5 3 Livro dos Salmos 139.23,24
As orações auto-focalizadas são mais demoradas, e dizem respeito ao meu mundo interior, quando tento perceber os desalinhamentos de minhas emoções, estados mentais e procedimentos. Estas orações estão assentadas basicamente em duas expressões bíblicas. Ou me pergunto como o salmista: “Por que estás abatida, ó minha alma? Por que te perturbas dentro de mim?”2, ou então peço a Deus que me revele o que se passa dentro de mim: “Sonda-me ó Deus, e conhece o meu coração, prova-me e conhece os meus pensamentos; vê se há em mim algum caminho mau e guia-me pelo caminho eterno”.3 Geralmente, estas orações auto-focalizadas me conduzem a dois períodos distintos: a súplica pelo “pão de cada dia” e o pedido de “perdão das dívidas”. As perturbações de minha alma geralmente estão ligadas com necessidades ou pseudo-necessidades não satisfeitas - e por isso peço “o pão”- e posturas e comportamentos que feriram o que já conheço do caráter, propósitos e intenções de Deus para comigo. Estes comportamentos e posturas eu chamo de pecado, e sobre eles peço que Deus derrame seu perdão, de modo que me livre de tais padrões e da culpa que me trazem. Esta é uma das maneiras como oro para que Deus “me livre do mal”. Nas orações de intercessão, desvio o foco de meus pensamentos e desejos de mim mesmo para outras pessoas ou situações. Peço a Deus que estenda sua mão sobre algumas pessoas com quem o meu contato pastoral está mais estreito, ou pessoas que me solicitaram que orasse por elas. Tenho uma lista de pessoas que estão sempre em minhas orações.
Nestas orações de intercessão, abro a agenda, o mapa mundi ou o jornal do dia na minha mente, e “peço que Deus traga seu reino e faça a sua vontade” em lugares e circunstâncias que não me afetam diretamente. Estas orações de intercessão trazem sempre dois resultados imediatos. O primeiro deles é que esta abstração faz com que na volta eu experimente meu pequeno mundo de maneira muito mais satisfatória, uma vez comparado às necessidades tão mais conflitivas que foram objeto de minhas súplicas a Deus. Em segundo lugar, estas abstrações me libertam de uma tendência egocêntrica, disciplinando meu coração a tornar-se cada vez mais inclusivo e solidário. As orações de intercessão também produzem um terceiro fruto. Muitas vezes, enquanto oro, percebo que eu mesmo poso instrumento de Deus para tocar em outras pessoas ou alterar situações. Nesse caso, uma compulsão para obedecer à voz divina cresce dentro e não há como nem porque escapar. Tenho certeza que Deus ouve minhas orações. Tenho muitas histórias para contar. Por isso estimulo você a orar como se Deus estivesse lá. Ele está.

TEXTOS SAGRADOS
Leia a Bíblia sistematicamente. Jesus disse que as Escrituras apontam para Ele4, e que a maneira como podemos nos alimentar ele é através de suas palavras, que são “espírito e vida”5, pois “a palavra de Deus é viva e eficaz”6 para produzir frutos espirituais na vida dos que crêem.7 A Bíblia não é apenas um livro de sabedoria milenar, mas essencialmente um livro de revelação espiritual. Por esta razão dizemos que a Bíblia foi inspirada por Deus. Isto é, Deus, de alguma maneira, se identificou pessoalmente com aquilo que mandou escrever. Conforme ensina um de meus mestres, “a Bíblia é o menu, Jesus é a refeição”.
4 Evangelho Segundo São João 5:39 5 Evangelho Segundo São João 6:63 6 Epístola aos Hebreus 4:12 7 Primeira Epístola de São Paulo aos Tessalonicenses 2:13 8 Epístola de São Paulo aos Romanos 12:2 9 Livros dos Provérbios de Salomão 27:17 10 Foster: 1983, p. 217 11 Evangelho Segundo São Mateus 4:1-11; 14:13-23; Evangelho Segundo São Marcos 1:35; 6:31
Através da leitura e meditação baseada na Bíblia você receberá insights espirituais. Estes insights são instrumentos de Deus para nos transformar através da “renovação do nosso entendimento”.8. Novamente, estamos diante de “legos mentais”, que precisam ser substituídos pela verdade. E não duvide, Jesus disse que “a verdade liberta”.

AMIZADES ESPIRITUAIS
Participe de um pequeno grupo de cristãos. Reuna-se regularmente com pessoas cujos corações estejam alinhados com o seu coração, cujos interesses, valores, prioridades e anseios sejam compatíveis com sua perspectiva de vida. Poucas coisas são tão relevantes para o processo de transformação pessoal e peregrinação espiritual como as amizades espirituais. A sabedoria bíblica diz que “como o ferro com o ferro se afia, também o homem, ao seu amigo”.9
Pessoas que andam em intimidade com Deus nos ajudam a ver Deus além de nós mesmos, e nos ajudam a ver como Deus nos vê. Como bem disse Virgil Vogt, “se você não pode ouvir a seu irmão, não pode ouvir o Espírito Santo”.10 Todos nós precisamos de pessoas para quem prestar contas de nossa peregrinação espiritual. Um par de amigos íntimos, um pequeno grupo de oração e estudo bíblico, e até mesmo um mentor espiritual, são vitais para o mundo espiritual se forme em nós, de dentro para fora. Quem deseja ser transformado por Deus, ao invés de apenas buscar a Deus em momentos de desespero com interesses de dádivas eventuais, precisa entrar na teia de relacionamentos dos filhos da luz.

SOZINHO, EM SILÊNCIO
Fique sozinho, em silêncio. Os místicos chamavam este ficar sozinho de “solitude”, diferente de solidão. Jesus constantemente se retirava para lugares desertos a fim de orar, de modo que pudesse estar em solitude, porque sozinho, mas não em solidão, porque com o Abba Pai.11 A solitude não eqüivale à mera ausência, mas sim a uma ausência cheia de atenção. Atenção à voz recriadora de Deus. A solitude é uma disponibilidade intencional para Deus.
Nesse sentido, existe grande diferença entre “meditação para relaxamento”, prática de lazer, e solitude. Esta diferença se mostra na história do homem que recebeu de seu terapeuta a recomendação de ficar sozinho, pelo menos uma hora a cada semana. Na primeira seção após a recomendação o paciente estava eufórico: “Foi ótimo, doutor, há muito que não separava tempo para mim mesmo”. “O que você fez enquanto esteve sozinho?”, perguntou o terapeuta. “Li Fernando Pessoa e ouvi algumas peças de Vivaldi”. “Mas não foi isso que mandei você fazer”. “Ora, o senhor não mandou que eu ficasse sozinho, pelo menos durante uma hora, a cada semana?” “Exatamente, eu recomendei que você ficasse sozinho, não em companhia de Fernando Pessoa ou Vivaldi”. “Mas, doutor... eu não me agüento”. Minha solitude é exercitada através de corridas três ou quatro vezes por semana. Percorro quase sempre a mesma distância, geralmente no mesmo percurso, e na mesma velocidade, de modo que sei exatamente quanto tempo tenho para ficar sozinho. Geralmente, inicio as corridas em estado de excitação. Enquanto corro, digo para mim mesmo: “Não adianta ter pressa. O outro lado do lago chega somente daqui a 5 minutos”. Não demora muito para que eu encontre um ritmo confortável, estabilize minha respiração e desacelere o turbilhão de pensamentos que passa pela minha cabeça. Tento deixar que esses pensamentos sigam seu caminho sem me deter em nenhum deles. Já perdi a conta de quantos encontros tive com Deus em meio às árvores do Parque do Ibirapuera, e não tenho palavras para descrever os lugares onde já cheguei nos minutos em que me dedicava a correr em círculos para chegar a lugar nenhum. Muitas vezes, entretanto, pratico minhas corridas apenas como recreação: re-criação, ouvindo música ou refletindo sobre alguma coisa que me incomoda. Mesmo assim, geralmente chego ao final das corridas com insights maravilhosos. Um dos melhores caminhos para a solitude é a prática de atividades mecânicas, que não ocupam nossa atenção concentrada. Ghandi, por exemplo, usava seu tear para recolher-se do mundo. Os movimentos autômatos estabilizam a freqüência dos pulsos elétricos do nosso cérebro, o que aumenta nossa capacidade de percepção e captação. Alguns meditativos diriam que enquanto corro, ouço a voz da minha consciência, minha imaginação e capto algumas mensagens no ar. Não duvido. Mas ninguém vai me fazer descrer que muitas destas vozes são de Deus.

CONCLUSÃO
Mais do que de auto-ajuda, o ser humano precisa de ajuda do alto. A sintonia entre o espírito do homem e o Deus Espírito é a única possibilidade de superação do complexo bio-psíquico. A dimensão última do ser humano é espiritual.
Arquimedes queria um ponto de apoio fora do universo. Disse que seria capaz de fazer uma alavanca e mover a terra de seu eixo. Jesus ofereceu esse ponto: “a fé remove montanhas”.12 A fé é a alavanca da oração: “sem fé, é impossível agradar a Deus, porquanto é necessário que aquele que se aproxima de Deus creia que ele existe e que é galardoador dos que o buscam”.13 O encontro com Deus é sempre um passo de fé. As expressões bíblicas “crer” e “ter fé” são distintas. Infelizmente, as traduções dos textos bíblicos tornaram as expressões equivalentes, mas na verdade, falam de duas coisas diferentes. Crer é assumir como verdadeiro, ter fé é sintonizar interativamente. Crer eqüivale a assumir como verdadeiro que existem ondas magnéticas no ar. Ter fé eqüivale a sintonizar as ondas para assistir TV ou ouvir rádio. Quem sabe que existem ondas no ar, crê. Quem sintoniza, tem fé. É possível, portanto, crer sem ter fé. A fé que remove montanhas não é aquela que sabe que Deus existe, mas aquela que além de saber que Ele existe, é galardoador, isto é, interage, comunga, participa.
12 Evangelho Segundo São Mateus 17.20 13 Carta aos Hebreus 11.6 14 Epístola de São Paulo aos Romanos 8.17
Isto faz perfeito sentido com a compreensão de que Deus é transcendente e imanente, e que “o Espírito de Deus se comunica com o nosso espírito”14, conforme afirmou São Paulo, apóstolo. A fé transcende a manipulação de processos mentais que qualificam à química do cérebro, e catapulta o ser na direção de um relacionamento com Deus. Um relacionamento pleno de possibilidades. 4