As 5 Marcas da Verdadeira Espiritualidade

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Prólogo... EM BUSCA DA VERDADEIRA ESPIRITUALIDADE

Começo agora a refletir com vocês sobre as cinco marcas da verdadeira espiritualidade, tomando como base o texto bíblico de Colossenses 3.1-4:
Portanto, já que vocês ressuscitaram com Cristo,
procurem as coisas que são do alto,
onde Cristo está assentado à direita de Deus.
Mantenham o pensamento nas coisas do alto, e não nas coisas terrenas.
Pois vocês morreram, e agora a sua vida
está escondida com Cristo em Deus.
Quando Cristo, que é a sua vida, for manifestado,
então vocês também serão manifestados com ele em glória.
Vou fazer, inicialmente, algumas considerações gerais sobre a espiritualidade ensinada pela Palavra de Deus e, logo depois, voltaremos ao texto transcrito acima.

Desde a conversão, somos sempre desafiados a escolher uma entre duas alternativas: viver segundo a carne ou viver segundo o Espírito. Todo aquele que experimenta agora a nova vida em Cristo, mas ainda continua inserido numa sociedade orientada por princípios e valores da velha vida, precisa estar sempre pronto a optar por um de dois caminhos: ou vai viver dando mais espaço à carne — e, por extensão, aos desejos da carne — e menos espaço ao Espírito, ou vai conceder mais espaço ao Espírito — e, consequentemente, às orientações do Espírito — e menos espaço à carne e aos desejos da carne.
O apóstolo Paulo fala a respeito dessa constante luta interior:
Por isso digo: Vivam pelo Espírito, e de modo nenhum satisfarão os desejos da carne.
Pois a carne deseja o que é contrário ao Espírito; e o Espírito, o que é contrário à carne.
Eles estão em conflito um com o outro, de modo que vocês não fazem o que desejam.
Mas, se vocês são guiados pelo Espírito, não estão debaixo da Lei.

[...] Os que pertencem a Cristo Jesus crucificaram a carne,
com as suas paixões e os seus desejos.
Se vivemos pelo Espírito, andemos também pelo Espírito
.
(Gálatas 5.16-18, 24-25)
Paulo deixa claro que a verdadeira espiritualidade é experimentada por quem anda de acordo com a orientação do Espírito. Com essa definição paulina, fica para trás, logo de saída, uma série de conceitos equivocados sobre espiritualidade.

Espiritualidade não é viver de acordo com uma série de regrinhas estabelecidas pela religião. Espiritualidade não é transpirar dons do Espírito por todos os poros, nem caminhar constantemente entre prodígios e maravilhas. Não é, de igual modo, ficar enfurnado ou trancado dentro de um quarto para ler a Bíblia e orar o dia inteiro.

Espiritualidade mesmo tem a ver com andar e viver de acordo com as orientações do Espírito. E é participar da vida de acordo com essas mesmas orientações.

A VERDADEIRA ESPIRITUALIDADE COMEÇA POR DENTRO
A verdadeira espiritualidade é algo que, antes de qualquer coisa, acontece por dentro de nós. É algo ligado, primeiramente, ao interior ou à essência, e não ao exterior ou à aparência Uma pessoa pode até parecer espiritual para quem a observa por fora, enquanto não passa, na verdade, de alguém que cultiva e nutre desejos carnais no coração e na mente. Tal qual ocorria, segundo Jesus, com os fariseus do seu tempo, que mais se assemelhavam a sepulcros bem ornamentados e enfeitados por fora. Por dentro, porém, só havia podridão e ar fétido (Mateus 23.27-28).

Francis Schaeffer lembra que, nos Dez Mandamentos dados a Moisés, a última palavra de ordem condena a cobiça. Para ele, a ordem para não cobiçar é o mandamento interior que mostra ao homem que se julga moralmente reto, que ele realmente precisa de um Salvador. Tal homem moral médio, que tem se comparado com outras pessoas e com uma lista bastante fácil de regras (mesmo se elas lhe causam alguma dor e dificuldade), pode sentir, como Paulo, que tudo está indo bem. Mas, de repente, quando confrontado com o mandamento interior para não cobiçar, ele é forçado a cair de joelhos”.

A lei mosaica proibia a adoração de outros deuses, a veneração de ídolos, o uso do nome de Deus em vão, o uso egoísta do tempo, a desonra de pai e mãe, o homicídio, o roubo, o adultério e a mentira. Todas essas são ações exteriores. O último mandamento, entretanto, proíbe a cobiça. E a cobiça tem a ver com sentimentos interiores. Ou seja: a questão toda se resume ao que se dá por dentro. Você cobiça ter outros deuses e adorar ídolos, cobiça monopolizar o tempo todo apenas para o que lhe apraz, cobiça a mulher do próximo, cobiça manipular a verdade para proveito próprio, cobiça o que pertence aos outros. E o que acontece? Você idolatra, você não dedica o dia de descanso ao Senhor, você adultera, você mente, você inveja e rouba. Então, a espiritualidade começa com a mudança que acontece por dentro quando uma pessoa nasce de novo em Cristo. Se por dentro as coisas forem resolvidas, logo a nova vida irá se manifestar também para fora.

Sabemos que tudo começa no coração. O sábio, em Provérbios, já alertava quanto a isso: “Acima de tudo, guarde o seu coração, pois dele depende toda a sua vida” (4.23). Desejos ilícitos começam no coração e criam raízes, desenvolvem-se e, depois, viram atos. E aí já não é mais possível voltar atrás.
Como acontece na hora da decolagem de uma aeronave. O piloto confere os aparelhos e os instrumentos do avião para saber se está tudo em ordem. Caso identifique algum problema ou defeito, o comandante desiste de decolar. Mas é uma decisão que precisa ser tomada antes da aeronave sair do chão. Porque depois que o avião sai do chão, não tem mais jeito. Só é possível tratar do problema com segurança enquanto o avião ainda está na pista, preparando a decolagem. Depois que o avião levanta voo, não dá mais. Uma vez nos ares, qualquer defeito pode provocar uma tragédia.

Em outubro de 1996, um avião Fokker 100, da companhia TAM, que seguia para o Rio de Janeiro, caiu numa rua do Jabaquara, um bairro paulistano, matando 99 pessoas e incendiando diversas residência ao longo de uma rua inteira. Após as investigações de costume, concluiu-se que o funcionamento indevido de um relé provocou a abertura do reverso direito do jato. Os reversos auxiliam o sistema de freios e só devem abrir no momento do pouso. Com o reverso acionado, o avião foi perdendo altura até desabar sobre as casas. Se o problema houvesse sido descoberto antes do avião decolar, o acidente não teria acontecido.

É bem assim. Ou resolvemos o problema por dentro, e abortamos a decolagem para que o desejo não se transforme em ato pecaminoso, ou o estrago será bem maior depois. Ao abrir espaço para o desejo, você contribui para que, em seguida, o desejo vire uma ideia, a ideia se torne um ato, e o ato — uma vez praticado — deixe um rastro de feridas e cicatrizes.

MODELOS DE ESPIRITUALIDADE NOS TEMPOS DE JESUS
Nos tempos de Jesus, as pessoas conheciam diversos modelos de espiritualidade. Os quatro modelos mais destacados possuíam uma grande semelhança com certos modelos de espiritualidade que podemos encontrar atualmente nas igrejas e grupos religiosos.

Em primeiro lugar, existia o modelo dos fariseus. O modelo farisaico de espiritualidade era essencialmente legalista. Mais do que a Lei, a interpretação da Lei devia ser sempre obedecida. Pois havia uma diferença entre a Lei em si e a aplicação da mesma feita pelos líderes religiosos.
Por exemplo: Lei de Moisés mandava guardar o sábado. A partir daí, os intérpretes da Lei determinavam quantos passos podiam ser dados e quantas mastigadas eram permitidas no sábado. E a submissão à Lei, ou à interpretação da Lei, para os fariseus, precisava ser cumprida de maneira absoluta.
Jesus respeitava a Lei, mas não era legalista, nem se deixava aprisionar pelo legalismo. Para o Mestre, as regras estabelecidas pela religião nunca foram padrão de espiritualidade. Por isso, ele curava no sábado, e socorria os outros, e deixava os discípulos colherem espigas de milho para matar a fome, pois a vida valia mais do que o sábado e as regrinhas religiosas (Marcos 2.27-28).

O segundo modelo de espiritualidade do judaísmo nos tempos de Jesus era o dos saduceus. Eles se diziam os únicos herdeiros do sacerdócio e os verdadeiros guardadores do templo. A espiritualidade dos saduceus estava toda voltada para o templo, para os ritos, para as liturgias, para os sacrifícios. Toda a vida religiosa circunscrevia-se em torno do culto.

Essa gente não sabia viver sem templo, sem liturgia, sem rito. Podia até viver sem Deus, mas nunca sem o templo, sem os rituais do culto ou sem a oferta de sacrifícios. Podia viver sem Deus, mas não sem credo. Podia viver sem Deus, mas não sem ritos litúrgicos. Podia viver sem Deus, mas não sem vestes paramentais. Podia viver sem Deus, mas nunca sem os símbolos religiosos.

O terceiro modelo de espiritualidade era o dos essênios, isto é, judeus que viviam em reclusão, num estilo de confinamento religioso parecido com o dos monges nos mosteiros. Eles achavam que, para desfrutar da verdadeira espiritualidade, a pessoa precisava se afastar de tudo, assumindo costumes ascéticos e rejeitando qualquer tipo de prazer profano ou de convívio social. Acreditavam que, para ser espiritual, é necessário ficar isolado, orando e lendo as Escrituras.

Assim como Jesus quebrou o código de espiritualidade dos fariseus, curando no sábado, e o código de espiritualidade dos saduceus, desenvolvendo o seu ministério fora das muralhas do templo (inclusive fora das fronteiras judaicas, chegando aos gentios e samaritanos), o Senhor Jesus também quebrou o código de espiritualidade dos essênios participando de festas, como a do casamento em Caná da Galiléia, onde fez o seu primeiro milagre ao transformar água em vinho. Cristo não era um monge, nem um asceta, ou um eremita — como foi, por exemplo, o profeta João Batista, que vagava pelo deserto alimentado-se de gafanhoJesus freqüentava as festas, aceitava convites para fazer refeições com pessoas interessadas em conhecê-lo — e, muitas vezes, em casas de gente marginalizada pela sociedade, como a de Mateus e Zaqueu, que eram publicanos, ou cobradores de impostos para o Império Romano —, deixava uma prostituta arrependida lavar seus pés diante dos líderes religiosos da época, e coisas assim. A ponto de ser chamado, por aqueles que o perseguiam, de comilão e beberrão, amigo de publicanos e pecadores (Mateus 11.19).

O quarto conceito de espiritualidade judaica era o dos zelotes, a espiritualidade da ação política. Eles pregavam a derrubada do domínio do Império Romano em nome de Deus, ainda que fosse necessário pegar em armas e causar muitas mortes nessa revolução. O discurso religioso dos zelotes era todo fundamentado em ideologias políticas e a leitura das Escrituras refletia as expectativas politizadas da figura do MesAlguns estudiosos se referem a Judas Iscariotes como um zelote. Ele teria se aproximado de Jesus por vê-lo, inicialmente, como grande líder revolucionário e, à medida que prestava mais atenção no conteúdo dos discursos do Senhor, foi se desencantando — até concluir que, se o mestre nazareno não apoiasse os ideais revolucionários contra o Império Romano, na verdade acabaria atrapalhando. Por essa razão, resolveu denunciá-lo.

Foi o modelo de espiritualidade seguido por Thomas Münzer, na Alemanha luterana do século 16. Münzer reuniu centenas de camponeses armados para participarem de um levante contra os príncipes alemães. Pouco tempo antes, Lutero tinha deixado de dar ouvidos ao seu discurso radical e fanático, que utilizava figuras apocalípticas para convocar o povo à suposta batalha do Armagedom contra os governantes da Alemanha.

Jesus Cristo também não se encaixava no modelo de espiritualidade dos zelotes. Afinal, embora criticasse o poder político constituído — declarando que o apego ao poder destoava da sua proposta de vida (Mateus 20.25-28) e chegando a chamar Herodes de raposa (Lucas 13.31-32) —, o Senhor anunciava a Pilatos, por outro lado, que o seu reino não era deste mundo (João 18.35-36), que o uso da espada em disputas poderia levar à morte pela espada (Mateus 26.51-53) e que, em vez de buscar vingança, temos a responsabilidade de orar em favor dos nossos inimigos (Mateus 5.38-48).
O Senhor Jesus, como fica claro, não adotou nenhum desses quatro modelos de espiritualidade. Não era legalista como os fariseus, embora respeitasse a Lei de Moisés. Não era ritualista como os saduceus, embora cumprisse suas obrigações religiosas na sinagoga desde pequeno. Não era ascético como os essênios, embora se refugiasse em lugares solitários para ter seus momentos de devoção e oração. E não acalentava objetivos revolucionários radicais como os zelotes, ainda que mantivesse uma postura crítica diante do sistema político de então.

Esses conceitos de espiritualidade não refletem os ensinos de Jesus a respeito da espiritualidade. De acordo com o Evangelho, espiritualidade tem a ver com a postura do coração, com a pureza interior e com as motivações corretas, assim como o Senhor mesmo ensina a respeito da oração, da ajuda aos pobres e do jejum nas páginas do Sermão do Monte (Mateus 6.1-18).
A ESPIRITUALIDADE COMO EXPERIÊNCIA INTEGRAL
Convém lembrar também que o conceito bíblico de espiritualidade envolve o ser inteiro, é uma experiência integral, holística (palavra que procede do termo grego holos, e significa inteiroplenocompleto).

Durante muito tempo, em especial a partir do platonismo e do neoplatonismo que encontramos na teologia de Agostinho de Hipona, no século 4 d.C., a teologia cristã assumiu matizes dualistas, defendendo a supremacia da alma sobre o corpo. Nessa linha de raciocínio, o prazer deve se restringir apenas ao território da alma, e jamais estar vinculado aos desejos do corpo. Por isso, em contradição com textos muito claros das Escrituras, o cristianismo medieval passou a exaltar a virgindade dos santos e, de maneira bastante enfática, apregoar que Maria não teve outros filhos, permanecendo virgem mesmo após o nascimento de Cristo.

A partir daí foi criada uma abissal separação entre corpo e alma, entre o intelecto e a fé, entre o profano e o sagrado. A bem da verdade, essa cisão não existe. O apóstolo Paulo, por exemplo, escrevendo à igreja de Tessalônica, pede a Deus que abençoe aqueles cristãos por inteiro e integralmente: “que todo o espírito, a alma e o corpo de vocês sejam preservados irrepreensíveis na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo” (1 Tessalonicenses 5.23).

A verdadeira espiritualidade tem a ver com o ser humano inteiro: corpo, mente, intelecto, emoções e sentimentos.

Durante um apelo evangelístico, certo homem que perdera as duas pernas veio se arrastando à frente para manifestar sua decisão de fé. Perguntou, então, ao pregador: “Deus aceita um homem pela metade?” E o pregador respondeu com firmeza: “Deus aceita um homem pela metade que se entrega a Ele por inteiro. O que Deus não aceita é um homem inteiro que se entregue a Ele pela metade”.
A verdadeira espiritualidade está ligada ao modo como controlo meus pensamentos, mas também ao uso que faço das minhas palavras. Está ligada ao controlNa Primeira Carta aos Coríntios o apóstolo Paulo combateu o pensamento dualista, também defendido naqueles tempos por hereges gnósticos que enfatizavam o cuidado com a preservação da pureza da alma e pouca importância davam à santidade do corpo. Afirmavam que o corpo já estava mesmo corrompido e, consequentemente, o que era feito com ele não interessava. O importante, para os gnósticos dualistas, era tão-somente salvaguardar a alma.
Eis a razão porque Paulo exortou os coríntios a andarem de maneira santa, porque o corpo é templo do Espírito (1 Coríntios 3.16-17 e 6.18-20). O apóstolo queria mostrar que a espiritualidade envolve o ser inteiro: alma, mente, corpo, emoções, sentimentos. Queria que os coríntios vivessem uma espiritualidade integral, completa e plena, conhecendo a vontade de Deus para todos as dimensões da vida.

JESUS CRISTO É NOSSO MODELO DE ESPIRITUALIDADE
Jesus Cristo é a nossa referência maior. Ele, portanto, é também nosso modelo de espiritualidade.
Ele se encarnou, veio em corpo, submetido a todas as limitações humanas, e também foi tentado. Isso significa que a espiritualidade não impede a tentação. Se somos espirituais, também somos tentados. E se formos mais espirituais do que carnais, fica mais fácil vencer a tentação.

Jesus foi tentado. E também foi perseguido, incompreendido, ridicularizado, traído, rejeitado e abandonado. Ele também atravessou problemas. Ser espiritual não significa estar protegido por uma redoma, sem jamais enfrentar momentos difíceis.

Em meio a tudo isso, qual era o modelo de espiritualidade de Jesus? A resposta está no final do Sermão do Monte, na conclusão dos seus ensinos sobre como devemos andar neste mundo.
O Senhor Jesus ensina: “Nem todo o que me diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino dos céus”, Porque espiritualidade não se trata de um discurso, de um credo, de uma confissão religiosa. “Mas apenas aquele que faz a vontade do meu Pai que está nos céus”. Para Jesus, a espiritualidade é tão somente alguém vivendo conforme a vontade de Deus aqui na terra (Mateus 7.21). Espiritualidade é fazer o que a Palavra de Deus ensina. Cumprir o que o Senhor ensinou.

Além disso, no mesmo texto, o Senhor Jesus rejeita três critérios de medição da espiritualidade. Normalmente, muitos de nós usamos os mesmos critérios para medir a espiritualidade dos crentes.
Em primeiro lugar, Jesus deixa claro que a espiritualidade verdadeira não tem nada a ver com o critério da fala eloquente. Perguntam: “Não profetizamos em teu nome?” (Mateus 7.22), e o Senhor responde: “Afastem-se de mim”. Porque não é o critério da fala eloquente que mede a espiritualidade de alguém. Espiritualidade não é pregar com fervor, não é fazer sucesso como pregador, não é encher auditórios com multidões. A espiritualidade autêntica é fazer a vontade do Pai. Nada tem a ver com a fala sedutora ou com a fala encantadora dos grandes pregadores.

Em segundo lugar, Jesus deixa claro que a espiritualidade verdadeira não pode ser medida pelo critério do poder e da autoridade. Perguntam: “Em teu nome não expulsamos demônios?” (Mateus 7.22) e Jesus diz: “Afastem-se de mim”. Porque também não é esse o critério. Ter poder e autoridade sobre os demônios não significa que você seja espiritual. Se você entra num lugar e os demônios saem correndo, isso necessariamente não quer dizer que você pode ser considerado alguém espiritual.

Em terceiro lugar, a espiritualidade também não pode ser medida pelo critério do ato prodigioso. Perguntam: “Em teu nome não realizamos muitos milagres?” (Mateus 7.22), e novamente Jesus responde: “Afastem-se de mim”. Porque critério do ato prodigioso não conta para qualificar a verdadeira espiritualidade. Fazer milagres não prova absolutamente nada.

Em outras palavras Jesus está dizendo: “Vocês estão achando que porque usam meu nome e as pessoas se convertem, os demônios são expulsos e os milagres acontecem, isso significa que vocês podem entrar no meu Reino? Não se iludam, senhores. Vocês pregam e as pessoas se converteram porque vocês usam o meu nome. Vocês expulsam os demônios porque usam o meu nome. Vocês fazem milagres porque usam o meu nome. O poder está no meu nome, e não na ação de vocês”.
E mais: “Vocês não entrarão no Reino e eu não os conheço porque, embora o meu nome esteja na boca de vocês, nunca esteve gravado nos seus corações. Vocês usam o meu nome, mas não creem no meu nome. Então, afastem-se de mim”.

Nenhum desses três critérios serve para medir a espiritualidade de alguém. A espiritualidade verdadeira está relacionada com a submissão à vontade do Pai, está ligada à vida vivida de acordo com a vontade de Deus.

Se a nossa vida, se a nossa maneira de andar, se o nosso procedimento, se as nossas ações estão de acordo com a vontade de Deus, então estamos experimentando a verdadeira espiritualidade. O Senhor Jesus, nossa referência maior, declarou: “A minha comida é fazer a vontade daquele que me enviou e concluir a sua obra” (João 4.34).

PARTICIPANDO DA VIDA EM CRISTO
Voltemos agora ao texto que mencionamos inicialmente. Trata-se de Colossenses 3.1-4. Esse texto descreve a espiritualidade verdadeira a partir de quatro pressupostos.

Em primeiro lugar, a verdadeira espiritualidade brota de uma verdadeira conversão. Brota da nova vida em Cristo. Paulo afirma: vocês ressuscitaram com Cristo. Vocês têm uma nova vida em Cristo. O verso 3 declara que já morremos com Cristo na nossa conversão, e a nossa vida está escondida em Cristo.
A autêntica espiritualidade só existe na vida de quem se converteu de verdade, na vida de quem já passou pelo novo nascimento: “Em verdade digo que quem não nascer de novo não pode ver o Reino de Deus” (João 3.3). Quem já passou pela conversão autêntica é agora uma nova criatura, porque aquele que está em Cristo é um novo ser, as coisas velhas já passaram e tudo se fez novo (2 Coríntios 5.17).

Religião não consegue dar vida nova a ninguém. Igreja não consegue mudar a vida e o caráter de ninguém. Ainda que alguém fique freqüentando cultos a semana inteira, orando dentro do quarto o tempo inteiro, decorando todos os versículos da Bíblia e cantando todos os hinos do hinário, a transformação da vida não vai acontecer. Porque a vida nova é dada quando nos convertemos, quando nascemos de novo, quando temos uma experiência de fé pessoal em Jesus como Salvador e Senhor.

A verdadeira espiritualidade acontece com quem tem vida nova, com quem passou pelo arrependimento e pela fé. É o que está simbolizado no batismo, conforme Romanos 6.4 e Colossenses 2.12. Morremos com Cristo, e fomos imersos. Depois, ressuscitamos com Cristo, com uma vida nova, e somos assim erguidos das águas. O batismo descreve esse processo de morte e ressurreição em Cristo, ou seja, o processo da conversão e do novo nascimento. Quando você é imerso nas águas, está dizendo: “Já estou crucificado com Cristo”. E quando você levanta das águas, está confessando: “agora vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim, e a vida que agora vivo, vivo-a na fé do Filho de Deus”, como o próprio apóstolo Paulo afirmou em Gálatas 2.20.

Em segundo lugar, a verdadeira espiritualidade começa na mente: “procurem as coisas que são do alto, onde Cristo está sentado. Mantenham o pensamento nas coisas do alto, e não nas coisas terrenas”.
Aí você diz: “Então não vou mais me preocupar em pagar conta nenhuma, porque conta é coisa terrena”. Você pode até deixar de pagar sua conta de luz, mas pode se preparar para se sentir muito espiritual no escuro, porque vão cortar a sua luz. Você vai se sentir muito espiritual sem linha telefônica, porque vão cortá-la. Você vai se sentir muito espiritual sem comida em casa, porque quem não compra comida, não come. Ou, então, você diz: “Agora não vou dar mais presente para ninguém, porque presente é coisa terrena”. Ou ainda: “Agora não vou mais naquela churrascaria gostosa, porque churrascaria é coisa terrena. E também coisa carnal, aliás”.

Mas coisa terrena não tem nada a ver com isso. Quando o apóstolo Paulo orienta os seus leitores a não fixarem o pensamento nas coisas terrenas, está se referindo à mente dominada pelas coisas da natureza terrena, a natureza que tínhamos antes da conversão, a natureza afastada e separada de Deus. A natureza terrena provoca o desejo de pecar. A natureza terrena é o envolvimento com as coisas que não correspondem aos valores do Reino de Deus. Quando Paulo fala de espiritualidade, ele diz que espiritualidade começa no momento em que colocamos nossa mente nas coisas do alto, fixamos nossos pensamentos nos princípios do Reino de Deus, nos valores eternos, no padrão de vida estabelecido pelo Evangelho. Espiritualidade é viver a vida aqui de acordo com os valores e princípios do Senhor.
Paulo enfatiza que a espiritualidade resulta do pensamento que se fixa nas coisas do alto, pois é o pensamento que define as ações. Mas se tivermos a nossa mente nas coisas terrenas, as nossas ações também só reproduzirão os desejos terrenos, porque o corpo faz o que a mente manda. Tudo começa na mente. A mente controla o que dizemos, controla os desejos, controla os atos. Tudo começa no pensamento. Se a sua mente estiver voltada só para as coisas terrenas e carnais, com certeza você terá muita dificuldade para experimentar a espiritualidade verdadeira.

Um grupo de paraquedistas descobriu, durante um voo de treinamento, que ratos estavam roendo as cordas dos paraquedas. Então pediram ao piloto que subisse, arremetendo a aeronave para cima, porque os ratos não suportam a altitude e acabariam morrendo.

Quer que os ratos terrenos parem de roer as cordas do seu paraquedas? Suba. Vá para cima. Busque as coisas do alto. Como quer viver a espiritualidade verdadeira se não sobe em direção a Deus? Se não eleva os pensamentos para as grandes coisas do Senhor? Você vai continuar rastejando como um réptil, em vez de voar como águia — a águia descrita em Isaías 40.31? Se você fixar a mente nas coisas do Senhor, você não terá mais medo das alturas, como declara o autor de Eclesiastes 12.5.

Vamos pensar nas coisas que são do alto, e não nos deixar moldar pelas opiniões de pessoas que, só porque são famosas ou ricas, são tão ouvidas sem terem nada de proveitoso a dizer. Nossas mentes precisam estar voltadas para as coisas do alto se quisermos ser, de fato, espirituais, em vez de nos deixarmos enganar pela mídia e por essa sociedade de mentiras, que vive mentindo, chamando de normal o que é anormal, de bom o que é ruim, de ótimo o que é péssimo, de excelente o que é horrível, estabelecendo valores que se contrapõem aos princípios do Reino de Deus. Quer viver uma espiritualidade de verdade? Então fixe sua mente nas coisas do alto, e não nesses modelos mentirosos e corrompidos.

Quem faz a sua cabeça, afinal? A Palavra de Deus ou as palavras dos homens sem Deus?
Em terceiro lugar, Paulo diz que quando Cristo se manifestar, vamos nos manifestar com Ele em glória. Espiritualidade nesse mundo é algo trabalhoso e difícil. Paulo sabia disso. Não é fácil ser espiritual aqui. É preciso renunciar e rejeitar muita coisa, é preciso abrir mão dos desejos, de certos prazeres passageiros e efêmeros em nome de coisas permanentes. A busca da verdadeira espiritualidade é caminho estreito, como Jesus avisa em Mateus 7.13-14.

Hoje a nossa vida está escondida em Cristo. As pessoas riem, ridicularizam, zombam, duvidam, escarnecem, perseguem e não fazem nenhuma questão de compreender. Mas um dia, Cristo vai se manifestar em glória, e vamos participar da glória dele. Aqueles que sofreram com Cristo vão triunfar com Ele. Vocês que andaram pelo caminho estreito, que souberam pagar o preço, vocês que tiveram de renunciar, resistir e passar provações para manter o mínimo de coerência com os ensinos da Palavra de Deus, e perderam muitas coisas por causa do amor a Deus e ao Evangelho, não se preocupem, porque vocês serão vitoriosos com Cristo quando Ele se manifestar em glória.

Em 2 Coríntios 2.14, Paulo diz que Cristo nos conduz em triunfo, como um general vencedor que vai à frente recebendo todas as honras, e essas honras vão sendo distribuídas também para os que seguem em cortejo logo atrás do general, os soldados e escravos que participam da sua glória.

AS CINCO MARCAS DA VERDADEIRA ESPIRITUALIDADE
A verdadeira espiritualidade, de acordo com o ensino das Escrituras, se manifesta de cinco maneiras: através da humildade, da contrição, da devoção, da santidade e do amor.

Ou seja, só possui verdadeira espiritualidade quem se coloca humildemente diante de Deus, reconhecendo que depende dele. É a primeira bem-aventurança do Sermão do Monte (Mateus 5.3). É a bem-aventurança que abre as portas para todas as demais. Sem humildade não há como ter comunhão com Deus. Sem humildade não há como reproduzir a mente de Cristo, que abriu mão da sua glória, tornou-se servo e foi obediente até a morte de cruz, para depois ser exaltado e glorificado, como lemos em Filipenses 2.5-11.

Só possui espiritualidade autêntica quem se quebranta, quem tem o coração quebrantado diante de Deus. Como diz Davi no Salmo 51, Deus não se agrada de sacrifícios, e sim de corações quebrantados.
Só possui espiritualidade verdadeira quem mantém comunhão constante com o Senhor, numa devoção íntima e pessoal. Quem tem comunhão com a igreja do Senhor, mas não tem comunhão com o Senhor da igreja, está muito longe da verdadeira espiritualidade.

Só possui verdadeira espiritualidade quem anda em santidade. Ausência de santidade é ausência de espiritualidade.

Enfim, a verdadeira espiritualidade se manifesta também através do amor. Quem ama, quem é misericordioso, quem perdoa, quem tem compaixão, quem consegue suportar os outros, esse é aquele que experimenta, de fato, a espiritualidade ensinada pela Palavra de Deus.
A partir daqui vamos prosseguir nesse roteiro, analisando cada uma dessas cinco marcas da verdadeira espiritualidade.





HUMILDADE
Recordemos, para começo de conversa, qual é o objetivo desta série de reflexões. Pretendemos identificar aqui as cinco marcas da verdadeira espiritualidade.

Iniciamos essa jornada fazendo algumas considerações preliminares sobre as características da verdadeira espiritualidade, em comparação com falsos perfis de espiritualidade hoje ensinados nos púlpitos de muitas igrejas, e especialmente realçamos que a espiritualidade verdadeira tem a ver com o que acontece por dentro de nós, com a obra que o Espírito Santo vai desenvolvendo em nós.
É claro que à medida que o Espírito de Deus opera em nosso interior, surgem algumas marcas exteriores, ou seja, o que somos por dentro vai se revelando também em nosso jeito de ser por fora. Assim, desejamos a partir de agora apontar as cinco marcas que a verdadeira espiritualidade produz em nós e revela através da nossa maneira de viver.
A primeira marca da verdadeira espiritualidade é a humildade.

Vamos prestar atenção na narrativa de Mateus 20.20-28. Há aqui um diálogo importante entre Jesus e os seus discípulos a partir de um surpreendente pedido feito pela mãe de dois deles. Vejamos.
Então, aproximou-se de Jesus a mãe dos filhos de Zebedeu com seus filhos
e, prostrando-se, fez-lhe um pedido. “O que você quer?”, perguntou ele.
Ela respondeu: “Declara que no teu Reino estes meus dois filhos
se assentarão um à tua direita e outro à tua esquerda”.
Disse-lhes Jesus: “Vocês não sabem o que estão pedindo.
Podem vocês beber o cálice que eu vou beber?”
”Podemos”, responderam eles. Jesus lhes disse:
”Certamente vocês beberão do meu cálice; mas o assentar-se
à minha direita ou à minha esquerda não cabe a mim conceder.
Esses lugares pertencem àqueles para que foram preparados por meu Pai”.
Quando os outros dez ouviram isso, ficaram indignados com os dois irmãos.
Jesus os chamou e disse: “Vocês sabem que os governantes das nações as dominam,
e as pessoas importantes exercem poder sobre elas. Não será assim entre vocês.
Ao contrário, quem quiser tornar-se importante entre vocês deverá ser servo,
e quem quiser ser o primeiro deverá ser escravo;
como o Filho do homem, que não veio para ser servido,
mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos.
Quero fazer duas observações introdutórias.

Em primeiro lugar, o Senhor Jesus diz: “vocês não sabem o que estão pedindo”. Note que o Mestre responde à mãe dos discípulos usando o pronome no plural — “vocês não sabem” — e não no singular. Por quê? Porque Jesus não se refere só ao pedido da mãe, mas ao pedido dos filhos. Na verdade, os filhos estavam apoiando e achando muito vantajoso o pedido da mãe. Ela pedia algo que eles mesmos desejavam. A mãe estava sendo ali apenas a portadora do pedido. O pedido, a rigor, procedia dos corações dos dois discípulos.

A outra observação é que os demais discípulos reagiram com indignação — “quando os outros dez ouviram isso, ficaram indignados com os dois irmãos” — não por causa do pedido em si, mas porque eles desejavam o mesmo, só que não tiveram coragem de pedir. Ficaram indignados porque os dois pediram primeiro aquilo que todos, na área mais oculta e reservada do coração, também queriam.
Por isso, Jesus chamou todos eles à parte para uma conversa franca e sem subterfúgios. “Vamos abrir o jogodizia ele. “Vocês estão querendo falar comigo sobre distribuição de poder e autoridade entre vocês, não é?”. Jesus sabia que esse era o desejo do coração de todos eles.

E é sempre assim que acontece. Os que servem a Jesus precisam batalhar constantemente contra as tentações do poder e da vaidade que constantemente os cercam. Até mesmo as atitudes mais piedosas podem ser transformadas em instrumentos de manipulação e manobra, em recursos para o exercício do poder e do domínio, em expressões dissimuladas e camufladas de um coração mergulhado na vaidade, de uma alma encharcada de ganância ou de uma mente que, repetindo o motivo da queda original de Lúcifer e, posteriormente, do primeiro casal no Éden, quer assumir o lugar de Deus.

De acordo com os ensinos do Evangelho, só há uma maneira de evitar que essas coisas aconteçam: ser humilde de espírito. Ou, em outras palavras, ter humildade.

A HUMILDADE COMO MARCA DA ESPIRITUALIDADE
Quero me reportar a uma cena de uma história infantil, Alice no país das maravilhas, de Lewis Caroll — que na fachada é uma história para crianças, mas no conteúdo possui preciosas lições para os adultos.
A cena da história de Alice a que me refiro descreve e ilustra muito bem o lugar da humildade em nossa relação com Deus. Quem não leu o livro deve recordar-se da cena no clássico desenho de Walt Disney. Diante da pequenina porta que poderia conduzi-la ao mundo das maravilhas, Alice percebeu que era grande demais para atravessá-la. E, por ser grande demais, não conseguiria entrar. Logo depois, a menina descobriu que, para encolher e passar pela porta, precisava tomar uma pílula mágica. Na pressa, engoliu a pílula errada e cresceu ainda mais. Quando, enfim, tomou a pílula certa, encolheu como era necessário e passou pela porta, chegando ao desejado mundo das maravilhas.
Para entrar no Reino das maravilhas de Deus é preciso que encolhamos, é preciso que diminuamos. Porque a porta é estreita e pequena, como avisou Jesus em Mateus 7: “Entrem pela porta estreita, pois larga é a porta e amplo o caminho que leva à perdição, e são muitos os que entram por ela. Como é estreita a porta, e apertado o caminho que leva à vida! São poucos os que a encontram” (13-14).
Se quisermos manter e preservar a nossa grandeza, não passaremos. Porque só passamos pela porta do Reino de Deus quando encolhemos, quando diminuímos.

Esta é a lição da humildade dada por Jesus aos seus discípulos.

A humildade é a porta de entrada para todas as demais bem-aventuranças apresentadas no intróito do Sermão do Monte, no capítulo 5 de Mateus: “Bem-aventurados os humildes de espírito, pois deles é o Reino dos céus” (3). O nosso relacionamento com o Senhor começa neste ponto inicial: a humildade.
No salmo 40, lemos a seguinte afirmação do poeta: “Quanto a mim, sou pobre e necessitado, mas o Senhor preocupa-se comigo” (17). O salmista é Davi, um rei com poder e cercado de riquezas, mas mesmo assim admite: sou pobre e necessitado. Esse humilde reconhecimento de dependência de um Deus maior e poderoso é que abre as portas para o nosso relacionamento com o Senhor.

Gostamos de ler a confortadora palavra de Pedro: “Lancem sobre ele toda a sua ansiedade, porque ele tem cuidado de vocês” (1 Pedro 5.7), mas nos esquecemos do versículo anterior, onde lemos: “humilhem-se debaixo da poderosa mão de Deus, para que ele os exalte no tempo devido” (1 Pedro 5.6). Só aquele que se apequena diante de Deus, que se humilha diante dele, consegue obter a confiança necessária para lançar sobre o Senhor todas as ansiedades. Confiança é um atributo do coração humilde, e não do coração soberbo. O soberbo não sabe confiar. O soberbo está demasiadamente amparado em si mesmo para admitir que precisa se amparar em alguém maior e mais forte do que ele.

Assim como a gratidão, que também é atributo do coração humilde. “Deem graças em todas as circunstâncias, pois esta é a vontade de Deus para vocês em Cristo Jesus”, declara o apóstolo Paulo em 1 Tessalonicenses 5.18. A expressão da gratidão a Deus em todas as circunstâncias, mesmo durante as provações e privações da vida, é algo que só acontece quando somos suficientemente humildes para admitir que em tudo, e não só nas realizações dos nossos desejos, está a marca da mão potente de Deus. Demonstrar gratidão a Deus a partir da humildade do coração significa, portanto, reconhecer quem somos e quem Ele é em todas as circunstâncias da vida.

Lembrem-se, então, do que vimos até aqui: a confiança que traz a paz e a gratidão que traz a alegria decorrem dessa humilde dependência da poderosa mão de Deus e da vontade divina.
Além disso, Tiago afirma em sua carta que a humildade é uma clara demonstração de sabedoria: “Quem é sábio e tem entendimento entre vocês? Que o demonstre por seu bom procedimento, mediante obras praticadas com a humildade que provém da sabedoria”. Ou seja: aquele que não é humilde, na verdade, está confessando a sua inegável falta de sabedoria. Em outras palavras, o orgulhoso, o soberbo, o arrogante não passa de um insensato, de um estulto, de um tolo.

Finalmente, ainda resta citar outros dois textos bíblicos sobre a humildade. Lucas 9 adverte que não há discipulado sem humildade. Para seguir a Jesus é preciso, em primeiríssimo lugar, destronar o ego. Palavras do próprio Jesus: “Se alguém quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome diariamente a sua cruz e siga-me” (23). Não há como seguir a Cristo sem que o eu arrogante, soberbo, egoísta, e auto-suficiente seja retirado do trono e colocado na cruz, como fez o apóstolo Paulo: “Fui crucificado com Cristo. Assim, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim” (Gálatas 2.20). O primeiro passo para se tornar um discípulo de Cristo é a negação ou rejeição de si mesmo. É também tomar cada dia a cruz de Cristo, porque a renúncia da arrogância e do orgulho deve ser diária e constante, a cada nova situação da vida, a cada novo episódio do dia-a-dia, a cada nova circunstância da caminhada. A cada momento lidamos com apelos sedutores à vaidade, à arrogância, à soberba e ao orgulho. E a cada momento devemos estar dispostos a atender o chamado de Jesus: “negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me”.

O outro texto bíblico que quero citar é Mateus 18, onde a humildade é apresentada como dependência infantil diante de Deus: “Eu lhes asseguro que, a não ser que vocês se convertam e se tornem como crianças, jamais entrarão no Reino dos céus. Portanto, quem se faz humilde como esta criança, este é o maior no Reino dos céus” (3-4). Só entramos no Reino de Deus quando temos a certeza de que dependemos dele, quando estamos convencidos de que o Senhor é o autor da nossa vida, de que as bênçãos vêm dele, e mesmo as provações pelas quais passamos fazem parte, de alguma forma, dos propósitos divinos para o amadurecimento da nossa fé.

Não há como seguir a Cristo, ou como entrar no Reino de Deus, ou como conhecer o mundo maravilhoso da graça de Deus, sem humildade. Com orgulho e arrogância só seguimos o inimigo das nossas almas, só participamos do reino dos homens e só conhecemos o tenebroso mundo das trevas.
A arrogância e a soberba levaram o primeiro casal à perdição. Despertaram em Adão e Eva o desejo de serem iguais a Deus, de quererem se tornar os senhores das suas próprias vidas. Essa tentação original, descrita em Gênesis 3, repete-se recorrentemente na experiência diária de qualquer ser humano.
Enfrentamos sempre uma acirrada batalha contra o orgulho, a arrogância e a soberba para preservar a nossa comunhão com o Senhor. Só a humildade concede-nos a chave para podermos entrar no Reino de Deus.

É possível, inclusive, que tenhamos de lutar contra as sutilezas de uma espiritualidade soberba. Pois há muita gente que é arrogantemente humilde. Que se orgulha da sua humildade. Gente que se ufana de ter comunhão com o Senhor, sentindo-se sócio de Deus em poder e autoridade. Gente que se orgulha de possuir dons, esquecendo-se que os dons — justamente por serem dons — são dados pela graça de Deus, sem que sejam considerados os méritos pessoais.

Há muita gente que se sente maior do que os outros irmãos porque recebeu uma vocação ministerial, que acredita mesmo estar no topo da pirâmide espiritual por ser pastor, missionário, evangelista, bispo, apóstolo, cardeal, arcebispo, e por carregar qualquer um desses títulos eclesiásticos oriundos da sua condição institucional, mas que no Reino de Deus não possui nenhum valor — porque no Reino de Deus não há títulos. Ou, para ser mais exato, só há um título: o de servo.

A arrogância, o orgulho e a soberba contaminam as ações espirituais, são capazes de macular as mais puras intenções da espiritualidade. Por isso, a humildade é conditio sine qua non para nossa comunhão autêntica com o Senhor.
A HUMILDADE SE CONTRAPÕE A VALORES TERRENOS DO REINO DOS HOMENS
Os valores do Reino de Deus são diferentes dos valores do reino dos homens. A mãe e os dois filhos estavam equivocados no propósito do seu pedido porque os valores do Reino de Deus são outros. Por isso, Jesus os repreendeu: “Vocês não sabem o que estão pedindo”.

O Reino de Deus se diferencia essencialmente do reino dos homens, e isso está muito claro nas páginas do Evangelho. E quem não sabe fazer essa distinção acaba pedindo absurdos, como o que fizeram aqueles dois discípulos a Jesus. O que é considerado bom no reino dos homens, é essencialmente mal no reino de Deus. Por outro lado, o que é essencialmente mal no Reino de Deus, é considerado bom no reino da terra.

No Reino de Deus a pessoa não busca vingança, mas dá a outra face. No Reino de Deus, os últimos são os primeiros. No Reino de Deus, não é o rosto desfigurado pelo jejum que agrada a Deus, mas a sinceridade do coração contrito. Então, diz Jesus: “Vocês não sabem o que estão pedindo. Vocês não sabem o que é humildade, porque a humildade do reino dos homens não é a humildade do Reino de Deus. A humildade do Reino de Deus se contrapõe aos valores do reino dos homens”.

NA VERDADEIRA ESPIRITUALIDADE VEM EM PRIMEIRO LUGAR A DISPOSIÇÃO DE BEBER O CÁLICE AMARGO
Quando os discípulos se mostraram dispostos a se sentar ao seu lado no Reino de Deus, Jesus perguntou se estavam preparados para beber do cálice que ele mesmo beberia. A humildade brota dessa consciência de que primeiro precisamos estar preparados para beber o cálice amargo, depois podemos desfrutar das águas da glória divina. Primeiro precisamos estar preparados para que nos considerem réus, depois podemos participar da glória do Rei. Primeiro precisamos estar preparados para levar a coroa de espinhos, depois podemos receber a coroa de glória. A humildade sabe que primeiro bebemos do cálice amargo, depois participamos das doçuras celestiais.

Infelizmente, o que se faz hoje em nome do Evangelho é justamente o contrário. Primeiro estão buscando a coroa da glória, querem sentar-se no trono da glória, desejam receber o título da glória, esperam alcançar o reconhecimento da glória, esforçam-se para conquistar a fama da glória, e isso tem transformado igrejas em auditórios, pastores em semideuses, cantores evangélicos em artistas de luxo, e por aí vai. A humildade, entretanto, produz a disposição para bebermos primeiro o cálice amargo para depois esperarmos a glória celestial.

Quer seguir a Cristo? Está preparado para tomar o mesmo cálice que ele tomou? Lembre-se que o Filho de Deus não tinha sequer onde reclinar a cabeça. E se você não estiver preparado para ser perseguido, para ser ridicularizado por causa da sua fé, e se não entender que o fato de crer não coloca você numa redoma, mas o lança na cova dos leões, você não está preparado para seguir a Cristo.
Você só passará pela experiência de ver as bocas dos leões fechadas pelo anjo se estiver na cova com eles. A humildade reconhece que é preciso ter coragem para entrar na cova dos leões primeiro, para depois ver as bocas dos leões serem fechadas pelo poder de Deus.

Você está preparado para beber o cálice amargo? Só a verdadeira humildade produz a disposição para participar do cálice amargo de Cristo.

A HUMILDADE PROPICIA A CONTÍNUA SUBMISSÃO À VONTADE DE DEUS
Cristo advertiu: a decisão a respeito de quem vai se sentar à direita ou à esquerda dele é do Pai celestial. Pois são lugares preparados por Ele para ceder a quem Ele achar por bem. E não se espantem se quem estiver à direita do Pai for aquele ladrão que morreu ao lado de Cristo na cruz, e não um pastor, um diácono, um bispo, um evangelista. Não se admirem se for um gentio, se for aquele guarda romano, aquela prostituta que lavou os pés de Jesus. O Senhor é quem decide.

A humildade leva-nos a submetermos nossa vontade à vontade de Deus. A verdadeira humildade não é a que ordena a Deus que faça um milagre para que as minhas expectativas sejam atendidas, ou os meus caprichos sejam satisfeitos, mas é aquela que, mesmo descontente com a realidade (como acontecia com Cristo no Jardim das Oliveiras, extremamente angustiado com a situação, verdadeiramente aflito com aquela situação), expressa-se na coragem de dizer: “não gostaria de passar por isso, se puder, Senhor, afasta de mim esse cálice, mas que não se faça a minha vontade, mas a tua. Essa é a verdadeira humildade”.

A verdadeira humildade não é a daquele crente pretensamente fervoroso que diz ter um Deus que tudo pode, que é capaz de operar qualquer prodígio — ou que afirma, como nas frases de automóveis, “eu não sou dono do mundo, mas sou filho do dono”. Mas é aquela que tem a ousadia de pedir: faça-se a vontade de Deus. É aquela que, sinceramente, espera ver a vontade divina prevalecer sempre.

A HUMILDADE VERDADEIRAMENTE ESPIRITUAL ESTÁ FORA DA ÁREA DO PODER E DO DOMÍNIO
Jesus diz aos discípulos: “Vocês sabem que esse negócio de poder e domínio é para os governantes, para os políticos, para os senhores das nações, para os déspotas, para as pessoas que são capazes de matar para deter o poder, que gostam de exercer domínio e autoridade sobre os outros”. Esse tipo de apego ferrenho ao poder não é para os autênticos discípulos de Jesus. A humildade está fora dessa área. “Não será assim entre vocês”, disse Jesus.

Vocês já perceberam como o grande sonho de consumo das pessoas nessa sociedade materialista e consumista tem a ver, tão só, com as áreas caracterizadas pelo uso do poder e da autoridade? O grande sonho de vida das pessoas é ocupar lugares nos quais possa exercer poder e domínio sobre outros. Porém, “não será assim entre vocês”, advertiu Jesus.

Vocês têm funções diferentes na igreja, o Corpo de Cristo, mas não funções que outorguem legitimidade para o exercício do poder e do domínio. Não pensem como aquele aluno do seminário em que eu lecionava e que costumava comentar: “Esse negócio de ser pastor deve ser muito bom mesmo, porque a gente manda a congregação levantar, e todo mundo levanta. Depois manda a congregação sentar, e todo mundo senta”.

Agora permitam-me fazer uma observação pessoal. Nesses anos em que estou aqui, quase doze anos no pastorado desta igreja, nunca pedi uma coisa a qualquer zelador ou funcionário sem antes perguntar se ele estava ocupado, sem pedir que atendesse o meu pedido por gentileza e sem agradecer logo depois. E posso chamá-los até aqui para testemunharem a respeito do que estou afirmando.
Pastorado ou cargos de liderança não são lugares para o exercício do poder e da autoridade. São apenas funções distintas, funções diferentes das demais, também importantes e necessários no Corpo de Cristo.
Desafio qualquer líder desta igreja a confirmar se, em algum momento do meu convívio com vocês, demonstrei ter querido exercer poder e domínio fundamentado no argumento de uma pretensa vocação especial.

Quantas vezes fui voto vencido em reuniões de liderança, e fui obrigado a retroceder em alguma ideia ou em algum projeto, por não conseguir o apoio dos demais líderes? Para mim sempre foi mais importante manter o corpo de Cristo unido e integrado do que impor uma ideia ou um projeto só para demonstrar poder, autoridade e domínio.

Quantas vezes fiz ouvido de surdo — pois sou que escolho o que meus ouvidos ouvem — para não deixar mágoas ou ressentimentos se apossarem do meu coração? Para evitar que ressentimentos e mágoas façam morada em minha alma, só entra por esses meus ouvidos o que eu permito. Nunca retenho na mente qualquer sentimento que dê asas a um orgulho ferido ou a uma vaidade contrariada, porque o mais importante para mim, repito, é manter o corpo de Cristo unido e integrado. Não permito que a grandeza desse propósito principal se torne refém de pequenezas e mediocridades, como vaidades pessoais arranhadas ou objetivos de poder e autoridade prejudicados.

Nosso exemplo de vida e ministério é o Senhor Jesus, o Senhor do universo, que criou todas as coisas, mas num determinado momento abriu mão de toda a glória, fez-se homem e submeteu-se à morte de cruz, como exemplo de humildade a ser seguido nas palavras de Paulo em Filipenses 2.5-11: “Cristo Jesus, embora sendo Deus, não considerou que o ser igual a Deus era algo a que devia apegar-se; mas esvaziou-se a si mesmo, vindo a ser servo, tornando-se semelhante aos homens. E, sendo encontrado em forma humana, humilhou-se a si mesmo e foi obediente até a morte, e morte de cruz! Por isso Deus o exaltou à mais alta posição e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai”.

Sabem o que o apóstolo diz antes disso?

Prestem atenção: “Nada façam por ambição egoísta ou por vaidade, mas humildemente considerem os outros superiores a si mesmos. Cada um cuide não somente dos seus interesses, mas também dos interesses dos outros. Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus” (Filipenses 2.3-5).
O Senhor Jesus não espera outra coisa dos seus discípulos, senão que o imitem. E o imitem, muito especialmente, em sua postura de humildade.

Qualquer espiritualidade sem humildade é falsa espiritualidade. A verdadeira espiritualidade leva-nos a não fazer nada por ambição egoísta, nem por vaidade. Leva-nos a considerar os outros superiores a nós mesmos. Leva-nos a cuidar não somente dos nossos interesses, mas também dos interesses dos outros.
A ordem é essa: seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus. Se quiserem ser discípulos dele.
Se você quer experimentar a verdadeira espiritualidade, comece cultivando e praticando a humildade.
Pois essa é a primeira grande marca da espiritualidade autêntica.



CONTRIÇÃO
Prosseguimos esta série de reflexões sobre as cinco marcas da verdadeira espiritualidade. Depois de um breve intróito analisando as principais características de uma espiritualidade que corresponda aos padrões estabelecidos pela Palavra de Deus, focalizamos a primeira marca de uma vida autenticamente espiritual: a humildade — que juntamente com a contrição, a devoção, a santidade e o amor ajuda a desenhar a face da espiritualidade autêntica. Espiritualidade sem essas marcas fundamentais é apenas um arremedo de espiritualidade, é uma farsa, é uma caricatura da espiritualidade. Não passa de espiritualidade superficial e artificial.
Vimos que espiritualidade é algo que acontece, primeiro, por dentro de nós. E os que possuem essa verdadeira espiritualidade que acontece por dentro, manifestam que a têm em suas vidas, em suas posturas, em suas ideias, em suas palavras, em seus gestos e em seus atos.
Depois de vermos, então, que a humildade — a primeira marca — não é falta de amor próprio, não é autopiedade, não é complexo de inferioridade, não é ser capacho dos outros, e sim uma sincera consciência da dependência de Deus e das nossas limitações, tratemos, pois, da segunda marca da espiritualidade: a contrição.
Não há verdadeira espiritualidade sem contrição e quebrantamento, sem corações autenticamente quebrantados e contritos. E o texto que vamos usar como base bíblica está em Lucas 18.9-14. Vamos ler essa parábola de Jesus Cristo que, como toda parábola, é uma história que não aconteceu, mas poderia acontecer uma dificuldade, pois encontra-se — ao contrário das lendas, fábulas e histórias infantis — dentro da área da verossimilhança.
No que se refere especificamente a esta parábola, a narrativa aqui não só poderia acontecer, como acontece. Os personagens desta parábola refletem a nós mesmos. Nós mesmos somos os personagens desta parábola. Alguns de nós fazemos o papel do fariseu, e outros fazem o papel dos publicanos. Quando lemos esta narrativa, devemos entender que ela não se refere a dois personagens estranhos. Mas se referem a nós, se referem a gente que conhecemos muito bem. É um espelho. Alguns assumem a postura do publicano. Outros assumem a do fariseu. E sobre nós que a parábola fala agora.
A alguns que confiavam em sua própria justiça e desprezavam os outros,Jesus contou esta parábola:
“Dois homens subiram ao templo para orar; um era fariseu e o outro, publicano.

O fariseu, em pé, orava no íntimo: ‘Deus, eu te agradeço porque não sou como os outros homens: ladrões, corruptos, adúlteros, nem mesmo como este publicano. Jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de tudo quanto ganho’.
Mas o publicano ficou a distância. Ele nem ousava olhar para o céu, mas batendo no peito, dizia: ‘ Deus, tem misericórdia de mim, que sou pecador’. Eu lhes digo que este homem, e não o outro,
foi para casa justificado diante de Deus.
Pois quem se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado”.
Esse texto me faz lembrar das palavras de Davi no Salmo 51: “Senhor, não te deleitas em sacrifícios, nem te agradas com holocaustos, se não eu os traria. Os sacrifícios que agradam a Deus são os corações quebrantados. Um coração quebrantado e contrito, ó Deus, não desprezarás.”
É claro que Davi estava se lembrando do ritual dos holocaustos, onde as pessoas — para mostrar que estavam arrependidas e querendo que seus pecados fossem perdoados — levavam aos sacerdotes seus sacrifícios pessoais e coletivos. Os animais eram queimados para simbolizar o pagamento cruento pelo pecado cometido. Depois, as pessoas saíam de lá sentindo-se justificadas por causa do sacrifício e do ritual que haviam cumprido.
Só que agora Davi afirma: “Olha, Deus não precisa desses rituais necessariamente. Eles são só o sinal. São apenas a postura assumida do lado de fora revelando o que já aconteceu no lado de dentro. Deus não se agrada do sacrifício oferecido, do ritual cumprido por si só, se ele não estiver acompanhado de verdadeiro arrependimento. Porque não é o sacrifício oferecido em si que traz o perdão de Deus, mas o coração quebrantado, o arrependimento autêntico”.
Quais são os nossos holocaustos hoje? O ritual do batismo é um exemplo notório de um tipo de holocausto. Tem muita gente boa acreditando que recebeu a salvação porque se submeteu ao batismo. Sabemos que não é o batismo o instrumento de perdão para o pecador. Não é o ritual do batismo em si que justifica o pecador.
Aquele que entra no batistério para ser batizado, ou é batizado num ritual mais simples, como fazem os aspercionistas na pia batismal, não deve pensar que está recebendo perdão somente por estar nas águas. Quando alguém cumpre um ritual desses sem ter antes quebrantado o coração e se arrependido, na verdade só está participando de um banho, é só um pouco de água na cabeça, nada mais do que isso. O que importa para o Senhor é o coração quebrantado, o que importa para o Senhor é a autêntica contrição.
Gostaria de enumerar algumas características da autêntica contrição nesse contexto em que buscamos entender a verdadeira espiritualidade. Aquele que é verdadeiramente espiritual atravessa, inevitavelmente, a contrição. Assim como espiritual é o humilde, espiritual é também o contrito, o arrependido. Espiritual é aquele que está consciente de que é pecador e de que precisa da misericórdia e da graça de Deus.
NENHUMA JUSTIÇA PRÓPRIA
Na contrição, em primeiro lugar, não há busca de uma justiça própria, nem há concorrência espiritual — como esse fariseu fez em sua oração no templo: “Senhor eu te agradeço porque eu sou assim, eu te agradeço porque eu faço isso e aquilo, eu te agradeço, porque — se analisar direitinho — na verdade estás me devendo um monte de favores”. Enquanto isso, olhava para o outro, o publicano, dizendo: “Coitadinho desse aí que é um pobre pecador. Não passa de um publicano traidor, um falso judeu que cobra impostos para os romanos dos seus compatriotas. Vai casa a casa cobrando impostos atrasados, ou então fica na coletoria esperando que as pessoas do seu povo, do seu mesmo sangue, paguem impostos que serão remetidos ao dominadores, a Roma, aos nossos algozes. Miserável pecador é esse pobre publicano...”.
Na contrição verdadeira não há qualquer ideia de merecimento ou de concorrência, como havia na igreja de Corinto. Quando Paulo orienta os membros da igreja de Corinto sobre a questão do dom de línguas e de outros dons, Paulo percebe rapidamente que aquilo havia virado uma fogueira de vaidade, onde as pessoas queriam mostrar que eram mais espirituais do que outras, estabelecendo uma hierarquia de espiritualidade: “Tenho este dom e sou mais espiritual do que aquele que não tem. Falo na língua dos anjos e sou mais espiritual do que aquele que não fala”.
Quando Paulo percebeu que havia este elemento de concorrência, escreve: “Estou escrevendo a vocês como a meninões no Senhor, crianções na fé, gente infantil até o fundo d’alma”.
Na contrição verdadeira não há essa postura vaidosa de autojustificação, nem há concorrência espiritual.
CONTRIÇÃO É DESCIDA
Em segundo lugar, na contrição sobe-se ao templo para adorar e, ao mesmo tempo, desce-se na presença de Deus.
O texto diz que os dois homens subiram ao templo. Foram prestar adoração. Subiram ao templo para orar e cultuar. Foram ao Templo para falar com Deus. Acontece que, na contrição, enquanto se sobe ao templo, desce-se na presença de Deus. Na contrição ninguém vai à presença de Deus com o coração nas alturas. Ninguém sequer se sente digno de estar na presença de Deus. Chega e sai do templo convencido de que, a rigor, nem merecia estar ali.
Um pregador subiu ao púlpito para falar a certa congregação. Vaidoso, queria demonstrar aos ouvintes o seu conhecimento intelectual, citar todos os livros pesquisados, mencionar todos os pensadores que conhecia, e fez um sermão tão hermético, tão difícil de ser compreendido, que acabou descendo do púlpito profundamente frustrado e humilhado por notar que ninguém aproveitara qualquer coisa do que havia sido dito. Na saída, uma senhora de aparência simples passou por ele e, ao cumprimentá-lo, comentou: “Meu querido irmão, se você subisse ao púlpito quebrantado como desceu, com certeza desceria animado como subiu”.
Podemos aplicar esse princípio de postura diante de Deus em todos os nossos cultos: quando chegamos à presença do Senhor quebrantados e contritos, saímos fortalecidos e amadurecidos, porque o próprio Senhor Jesus ensina aos seus discípulos: “aquele que se exalta será humilhado, aquele que se humilha, será exaltado”.
SEM AUTOENGANO
Em terceiro lugar, na verdadeira contrição não há auto-engano. Chamo sua atenção para isso: autoengano é a pessoa acreditar numa mentira que ela mesma inventa sobre ela, e acredita tanto naquilo que passa a fazer parte da sua identidade.
O que mais me impressiona no texto que lemos é a frase: “o fariseu, em pé, orava no íntimo”. Era hipócrita no intimo. Era sinceramente hipócrita. Ele acreditava mesmo que era aquilo tudo. E isso, para mim, é particularmente assustador. Porque significa que ele fazia tudo movido por um coração inundado de hipocrisia.
Uma coisa é alguém ser hipócrita para os outros: quando chega em casa, sozinho, dentro do seu quarto, em cima do seu travesseiro, confessa a si mesmo: “Eu não presto, sei que não presto, mas para as pessoas me aceitarem, e para não ser punido ou desprezado, finjo que sou bom”. Esse ao menos tem consciência e, quem sabe um dia, pode vir a se arrepender.
Outra coisa é ser hipócrita para si mesmo. Aquele que é capaz, de no fundo do seu coração, fazer a oração mais sinceramente hipócrita que ele podia fazer. É isso que mais me impressiona e assusta nesta narrativa.
A contrição não participa desse processo de autoengano. O contrito sabe bem quem é por dentro, por isso pensa milhões de vezes antes de pisar em alguém que pecou, pensa milhões de vezes antes de ser juiz daqueles que erraram, pensa milhões de vezes antes de acusar os que, aos seus olhos, estão em pecado. Porque sabe quem é, sabe que para Deus não há diferença. Não adultera, mas sabe os pensamentos maliciosos e sujos que cultiva. Não rouba, mas sabe as maledicências que promove. Não desonra pai e mãe, mas sabe os desejos que corrompem o seu coração. Acima de tudo, sabe que diante de Deus só há uma postura plenamente aceitável: a do quebrantamento.
UMA OBSERVAÇÃO FINAL
Sei que, na nossa conversão, o coração se quebranta diante de Deus. Viramos todos publicanos diante de Deus, contritos e quebrantados.
Mas há um problema sério: muitas vezes, começamos a jornada cristã como publicanos diante de Deus e, com o correr do tempo, vamos nos transformando em religiosos hipócritas, vamos assumindo a postura do fariseu.
No começo, quando nos convertemos, a graça de Deus é tudo. Depois, com o tempo, vamos adotando uma série de legalismos que passam a dominar e controlar a nossa experiência de fé.
No começo somos capazes de ser misericordiosos e demonstrar imensa compaixão a todos, com uma inesgotável boa vontade. Mas, com o correr do tempo, vamos nos tornando juízes dos outros.
No começo valorizamos a comunhão com Deus, e mantê-la viva é o que mais nos importa. Temos uma sensibilidade enorme em relação ao pecado, qualquer ato indigno faz com que nos sintamos desconfortáveis. Mas, com o tempo, a devoção vai se tornando menos importante ou necessária e, gradativamente, vamos nos tornando mais tolerantes com o pecado e mais acostumados a ele.
Nosso problema não é que somos fariseus. Nosso maior problema é que já fomos publicanos, e quebrantados e contritos diante de Deus, e vemos agora uma outra face no espelho, um outro que já não corresponde ao que fomos: onde está nossa sensibilidade? onde está a devoção inicial? onde está aquela vontade de ter comunhão com Deus a todo o momento? onde está a ojeriza pelo pecado? onde está a fome pela Palavra de Deus? onde está a alegria de servi-lo?
Hoje muitos cultivam na vida apenas o igrejismo, a religião, o ritual, a liturgia. Ficamos semelhantes a um fariseu desses da parábola. Onde está, afinal, aquele publicano que havia dentro de nós quando nos convertemos?
Agora vou tentar explicar porque acontece essa transformação. Por que deixamos de ser publicanos contritos e passamos a ser fariseus ritualistas?
Porque a experiência da contrição tem que ser diária. O quebrantamento tem que ser contínuo. Foi o que ensinou o Senhor Jesus: “aquele que quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome cada dia a sua cruz e siga-me”.
Cada dia é uma nova conversão. Cada dia um novo quebrantamento. Se não houver contrição e quebrantamento diários, o nosso coração se torna, com grande facilidade e ligeireza, um fariseu.
A verdadeira espiritualidade não é aquela que aponta para o passado atrás, declarando: “Eu era assim”. Mas, é aquela que olha para o presente e indaga: “O que hoje eu preciso mudar? O que hoje eu preciso tirar da minha vida para não interromper minha comunhão com Deus? Do que hoje eu preciso me arrepender?”.
A verdadeira espiritualidade vem desse quebrantamento diário. Dessa necessidade constante de repetir as palavras de um hino que o evangelista Billy Graham usava para fazer seus apelos:
Tal qual estou eis-me, Senhor,
pois o teu sangue remidor verteste pelo pecador.
Ó Salvador, eu venho a ti.

Desde quando você não faz das palavras deste hino a sua oração? Você confessou, lá no dia da sua conversão que era indigno pecador, e nunca mais se conscientizou disso. E assim seu coração foi endurecendo, e você passou de publicado a fariseu, e sua oração contrita virou oração de ritual, palavras que saem da boca e não passam do teto. Você quando canta não sente mais alegria, só está cumprindo um rito. Você quando vem à igreja não sente nenhum prazer especial, só vem ainda porque seus pais ensinaram a vir. Você não tem tido experiências com Deus, não tem sentido o Senhor na sua vida, de maneira constante e transformadora. Você é capaz de se emocionar com uma cena de novela na televisão, mas não se comove com a obra do Senhor.
O que está faltando? Contrição. Contrição diária. Dizer ao Senhor todos os dias: "Ó, Salvador, eu venho a ti".


DEVOÇÃO
A terceira área em que a verdadeira espiritualidade se manifesta é a da devoção, a área da comunhão com Deus. Devoção não quer dizer outra coisa, senão busca da comunhão com o Senhor.
Vamos refletir de que maneira a espiritualidade se manifesta na prática da devoção.
Acredito piamente que muitas das nossas angústias, das nossas ansiedades e aflições só experimentamos porque não buscamos ao Senhor como deveríamos, e também porque não mantemos comunhão constante e contínua com Ele como convém.
Nem é ir muito longe para compreender isso. Basta notar como Jesus Cristo mesmo mantinha sua comunhão com o Pai.
Sabemos que Jesus era o Filho de Deus. Porém, embora continuasse sendo Filho de Deus, durante seu ministério Ele estava encarnado. O ensino bíblico sobre a encarnação sustenta que o Senhor Jesus assumiu completamente todas os atributos e as características do ser humano. Inclusive a possibilidade de ser tentado, como efetivamente foi, e de pecar, se quisesse. Se ele não pudesse pecar, qual seria o sentido de ser tentado? Ele podia pegar, sim. Mas não pecou. Fora isso, era um ser humano completo. Suportou todas as dores que suportamos, sofreu todas as aflições que sofremos, e enfrentou todas as noites de insônia que costumamos enfrentar. A noite que atravessou em claro no Jardim das Oliveiras, ou do Getsêmani, foi uma dessas difíceis situações de insônia, dor e aflição.
A diferença entre Jesus e as outras pessoas é que, assim como Ele assumiu plenamente a sua humanidade, também experimentou com profundidade as realizações que o ser humano pode ter na prática da comunhão com Deus.
Por isso, o apóstolo Paulo chama Jesus Cristo de o novo Adão. Ou seja: Ele conseguiu ser o que Adão não conseguiu, foi o que Adão deveria ter sido ao ser criado à semelhança de Deus, mas não conseguiu por causa do pecado. A profundidade da comunhão com Deus — que Adão teria experimentado se não cometesse pecado — o Senhor experimentou como encarnado. Jesus experimentou a plenitude da comunhão com Deus mesmo no momento difícil que estava passando atravessando.
Vamos descobrir como a verdadeira espiritualidade se manifesta na comunhão com o Senhor.
Quero ler Marcos 14, a partir do verso 32: Então foram para um lugar chamado Getsêmani, e Jesus disse aos seus discípulos: “Sentem-se aqui enquanto eu vou orar”. Levou consigo Pedro, Tiago e João, e começou a ficar aflito e angustiado. E lhes disse: “A minha alma está profundamente triste, numa tristeza mortal. Fiquem aqui e vigiem”. Indo um pouco mais adiante, prostrou-se e orava para que, se possível, fosse afastada dele aquela hora. E dizia: “Aba, Pai, tudo te é possível. Afasta de mim este cálice; contudo, não seja o que eu quero, mas sim o que tu queres”. Então, voltou aos seus discípulos e os encontrou dormindo. "Simão", disse ele a Pedro, "você está dormindo? Não pôde vigiar nem por uma hora? Vigiem e orem para que não caiam em tentação. O espírito está pronto, mas a carne é franca”. Mais uma vez ele se afastou e orou, repetindo as mesmas palavras. Quando voltou, de novo os encontrou dormindo, porque seus olhos estavam pesados. Eles não sabiam o que lhe dizer. Voltando pela terceira vez, ele lhes disse: “Vocês ainda dormem e descansam? Basta! Chegou a hora! Eis que o Filho do homem está sendo entregue nas mãos dos pecadores. Levantem-se e vamos! Aí vem aquele que me trai!”. (Marcos 14.32-42)
A melhor cena bíblica para fazer-nos entender bem o que significa devoção e busca da comunhão com Deus como expressão de espiritualidade é, sem dúvida, a atitude tomada por Maria, irmã de Marta, quando recebeu Jesus em casa e optou por ficar aos seus pés, aprendendo com ele na atitude devota de quem quer desfrutar ao máximo da presença do Mestre amado para ouvir e aprender.
A narrativa encontra-se em Lucas 10.38-42: enquanto Marta se encarregava de vários serviços, arrumando a casa e adiantando a refeição a ser servida, Maria permanecia aos pés do Senhor.
A lição é muito simples: quando o serviço prestado ao Senhor rouba os nossos momentos de devoção, impedindo-nos de manter comunhão pessoal com o Mestre, logo começamos a ter uma estranha sensação de vazio, de insignificância, de desperdício. Se a obra do Senhor, de tão repleta de atividades, programações e projetos, não nos deixa passar um bom tempo aos pés do Senhor da obra, tudo acaba perdendo o sentido.
A pior coisa que pode acontecer a um discípulo de Jesus é se cercar de coisas para fazer em favor do Reino de Deus a ponto de não ter tempo para se cercar do próprio Deus do Reino. Ou ficar tão envolvido com as atividades da igreja de Cristo que, nesse turbilhão de compromissos, não tenha mais nenhum tempo para se envolver com o Cristo da igreja.
Espiritualidade não significa envolvimento ativista e frenético com quase todas as áreas da igreja, ou com quase todos os seus ministérios. Pode até ser que isso aconteça, isto é, que alguém profundamente espiritual acumule uma série de responsabilidades eclesiásticas, empenhando-se para fazer sempre o melhor e dedicando-se de modo exemplar.
Espiritualidade, na verdade, significa essencialmente que o crente — mesmo envolvido com diversas atividades na comunidade de fé — não perde de vista a necessidade de dispor de tempo para a sua devoção pessoal, a fim de estreitar cada vez mais a comunhão com o Senhor.
Quero deixar bem claro a você que a verdadeira espiritualidade está profundamente vinculada a esses preciosos momentos que passamos na presença de Deus. Como lemos na letra de um dos nossos antigos hinos:
Quão preciosas são as horas na presença de Jesus, comunhão mui deliciosa de minha alma com a luz.
Os cuidados deste mundo não me podem envolver, pois é ele meu abrigo quando o Tentador vier.

Se quereis saber quão doce é com Deus ter comunhão, podereis, então, prová-lo e tereis compensação.
Procurai estar sozinhos em conversa com Jesus e tereis na vossa vida paz perfeita, graça e luz.
Ou ainda na letra de Sérgio Pimenta, num dos meus cânticos prediletos:
Cada instante contigo, Jesus,
que passo aos teus pés, eu sou mais feliz. Cada instante contigo, Senhor,
é paz em minha alma, suave harmonia no teu grande amor.
Vamos observar alguns pontos muito importantes a respeito da devoção que resulta da verdadeira espiritualidade.
Para começar, lembremos que a devoção, ou a busca da comunhão com o Senhor, pode ser pessoal ou coletiva. É bom que o crente experimente essas duas formas de devoção, pois são ambas importantes instrumentos para o nosso crescimento espiritual.
No texto que lemos, o Senhor Jesus não foi sozinho ao monte orar. Levou consigo os seus discípulos mais próximos, mais íntimos. Por alguma razão, ele os escolheu. Ele escolhe quem quer. E escolheu aqueles três para lhe fazerem companhia.
O Senhor se afastava para orar sozinho, pedindo que os três discípulos também orassem enquanto o aguardavam, e ao retornar flagrava-os dormindo. Aquele era um momento singularíssimo na vida de Jesus, pois ele estava se preparando para enfrentar a sua mais difícil batalha, a maior dor que ele já experimentada até então. Mas ao voltar, deparava-se com os três companheiros dormindo. E assim aconteceu três vezes seguidas.
O que desejo destacar neste episódio é a importância dos momentos coletivos de devoção. É muito bom cantarmos juntos, louvarmos juntos, orarmos juntos e ouvirmos juntos a Palavra de Deus. São bons e relevantes esses momentos de confraternização. Crescemos e amadurecemos juntos. O apóstolo Paulo afirma que a igreja é o corpo de Cristo: todos devem crescer em harmonia, todas as partes do corpo precisam se desenvolver em conjunto.
Mas não pode acontecer apenas dessa maneira. Os nossos momentos de devoção não devem depender tão somente das oportunidades em que participamos dos cultos coletivos. Precisamos ter momentos pessoais de devoção. Precisamos experimentar os efeitos desses momentos individuais na presença do Senhor.
O que estou querendo dizer é que sua devoção não pode depender dos outros. Falando sobre isso, recordo de algo que a esposa de um respeitado pastor fez questão de me contar em determinada oportunidade. Já viúva e enfraquecida pela idade, a doce senhora dizia, numa visita que fizemos a ela: “Muitas vezes eu acordava de madrugada e via meu marido de joelhos, orando ao pé da cama, e lhe dizia: — Querido, venha descansar. Ainda nem amanheceu. Volte para a cama e durma. Amanhã você faz suas orações. E ele respondia: — Quando você estiver com seu coração aflito, como está o meu agora, vai descobrir que em certos momentos não há como esperar para buscar a presença de Deus”.
A devoção pessoal é importantíssima e, definitivamente, não pode depender do tempo, da disposição, da companhia ou da presença dos outros.
Muita gente vive se manifestando contra casamentos mistos, isto é: de um crente com um não crente. Acredito pessoalmente que o casamento misto traz alguns problemas para o relacionamento dos cônjuges. Aquele que não é crente terá dificuldades para entender questões ligadas à fé e à vida cristã que só quem crê consegue entender. Mas também acredito que, apesar dessas dificuldades, o importante é que você se canse com alguém que o ame e respeite. Não adianta nada você se casar com uma pessoa da mesma fé, ou da mesma igreja, que vai acabar transformando sua vida num inferno.
Pois não deixa de ser também um casamento misto aquele no qual o rapaz está muito integrado na igreja e engajado em suas atividades, enquanto a sua esposa não quer saber de nenhum envolvimento com a obra do Senhor, não passa de uma freqüentadora de cultos, não deseja participar de qualquer programação ou evento. Bom, de certa forma esse não deixa de ser um casamento misto: um crente fervoroso que se casa com uma pessoa totalmente fria em relação aos interesses do Reino de Deus. Acontece que há um grande risco de vermos o crente fervoroso sendo, aos poucos, influenciado por aquele que está distante e desintegrado.
A sua comunhão com o Senhor, embora a comunhão coletiva seja boa, não pode depender dos outros. Se os outros não se engajam, se não vibram, se não participam, se sentem tédio com a obra divina, você deve permanecer fiel aos desafios do Reino de Deus e envolvido com a causa do Senhor.
E só vai conseguir conservar o fervor espiritual e o interesse pelo Reino se, em vez de depender do culto coletivo, estiver disposto a desenvolver sua própria devoção pessoal. Por isso, leve a sério a sua comunhão pessoal com Deus. É o que vai manter a chama acesa. Como a brasa que se mantém acesa enquanto estiver junto à fogueira.
Outra observação a ser feita é que a devoção não está separada das emoções.
O Senhor Jesus se retirou para orar e, diz o texto, estava “profundamente triste”. Ele mesmo chegou a afirmar que estava numa “tristeza mortal”. Porque passaria a enfrentar a dor e a agonia que nenhum ser humano sentira na vida, o Senhor estava preocupado, triste e aflito.
Alguns dos nossos momentos de devoção traduzem o estado de espírito em que nos encontramos naquelas circunstâncias específicas. Chegamos à presença de Deus revelado a condição do coração. Se o coração está esbanjando alegria, chegamos alegres à presença de Deus. Se, por outro lado, o coração está profundamente triste, é com essa tristeza profunda que nos apresentamos a Deus. As nossas emoções devem ser sinceramente expostas diante do Senhor. Como num conhecido cântico — que, na verdade, faz uso das palavras do salmista:
Com a minha voz clamo ao Senhor, com a minha voz ao Senhor suplico.
Diante dele a queixar-me eu estou, diante dele exponho a minha aflição.
Em nossos momentos de devoção é preciso dizer a Deus o que sentimos. É preciso expor a tristeza, a dúvida, a insatisfação, o medo, a decepção, a frustração, a expectativa.
Às vezes fico preocupado com certas orações padronizadas ou enlatadas que ouvimos. Orações que mais se parecem com discursos prontos. Com fórmulas muito quadradinhas e perfeitinhas. Fui membro de uma igreja em que congregava um senhor que todos costumavam chamar de irmão voluntário, pois sempre que o pastor pedia a alguém para voluntariamente fazer uma oração em voz alta, lá vinha o tal irmão voluntário com a mesma ladainha de sempre: “Senhor Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó”. Quando o ouvia, ficava me perguntando se uma oração para ser ouvida por Deus necessita, de fato, de um início com aquelas costumeiras expressões formais em uma voz impostada de locutor, ou se não bastaria alguém dizer qualquer outra coisa mais íntima, leve e informal, como: “Meu Paizinho querido, é muito bom poder falar com você agora...”.
Não era assim que o Senhor Jesus se dirigia a Deus — “Aba, Pai”?Aba era uma expressão aramaica usada por criancinhas para chamar o pai quando começavam a falar, ou a balbuciar as primeiras palavras. Tratava-se, pois, de um tratamento infantil bastante íntimo e carinhoso, do tipo “papa” ou “papi” em nossa língua.
A devoção, portanto, não está dissociada das emoções e dos sentimentos. Pelo contrário: a prática da devoção parte da vida real, das experiências cotidianas e dos dramas pessoais. Ou não foi assim que os salmistas se apresentaram diante do Senhor, a partir das suas crises, das tribulações, das aflições, dos medos, das situações concretas da vida e dos grandes questionamentos da existência?
Em terceiro lugar, a devoção não impede que as tentações aconteçam, mas nos ajuda a vencê-las.
Ao flagrar os discípulos dormindo enquanto deviam estar orando, Jesus os advertiu, dizendo: “Vigiem e orem, para vocês não caírem em tentação (quer dizer, para não cederem à tentação), pois o espírito está pronto mais a carne é fraca”.
Ter e manter um determinado tempo diário de devoção não livra ninguém de ser tentado, afinal “a carne é fraca”, mas tal prática fortalece a disposição do crente de resistir ao desejo ilícito e, com isso, fica mais fácil vencer a tentação.
Se não acredita, você mesmo pode comprovar essa afirmação. Quer vencer os desejos indesejados, vencer os apelos da carne, vencer a constante tendência para transgredir e desobedecer a Palavra de Deus, vencer as seduções da concupiscência e da natureza terrena? Quanto mais comunhão você tiver com o Senhor, quanto mais a sua mente se fixar nas coisas que são de cima, mais fácil será as tentações. Por outro lado, quanto mais longe você estiver do Senhor, maior será a possibilidade de cair.
Você sabe em que condições Pedro estava quando negou a Jesus três vezes? Você se lembra o que estava acontecendo com ele na ocasião? O evangelista Lucas dá essa informação: “Então, prendendo a Jesus, levaram-no para a casa do sumo sacerdote. E Pedro os seguia à distância” (22.54).
É bem isso. Quando seguimos Jesus à distância, quando o seguimos de longe, ficamos mais vulneráveis e, com toda a certeza, mais próximos da queda.
Não devemos brincar com a carne. A carne é fraca. Lembre-se de Davi no terraço do palácio vendo a mulher de Urias se banhando na casa vizinha. Sim, a carne é fraca. Nunca se sinta suficientemente forte. Nunca aposte na sua própria capacidade de vencer. Você será tentado e vai cair se não estiver em perfeita comunhão com o Senhor. Ore como orava o salmista em seus momentos de devoção: “Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração; prova-me, e conhece as minhas inquietações. Vê se em minha conduta algo te ofende, e dirige-me pelo caminho eterno” (Salmo 139.23-24).
Quando se trata de enfrentar a tentação, é melhor seguir o conselho de Paulo ao jovem Timóteo: “Fuja dos desejos malignos da juventude e siga a justiça, a fé, o amor e a paz com aqueles que, de coração puro, invocam o Senhor” (2 Timóteo 2.22).
Quando se trata de enfrentar a tentação, corajoso é aquele que tem coragem de fugir, de resistir, e não quem confia em si mesmo para enfrentá-la. Pois a carne, meus queridos, é fraca.
Mantenha, então, comunhão com Deus para não cair em tentação e para o espírito continuar pronto, superando sempre os desejos e as fraquezas da carne.
.Enfim, a devoção da verdadeira espiritualidade promove asubmissão absoluta do crente à vontade de Deus.
A constante devoção ajuda-nos a chegar ao ponto que Jesus Cristo chegou, disposto a declarar: “Pai tudo te é possível. Eu sei que, se quiseres, tu podes me tirar agora desse lugar, levando-me de volta para tua glória. Sei que podes impedir que eu passe por todo o sofrimento que me aguarda. Eu sei que podes enviar teus anjos para me socorrerem e livrarem dos meus perseguidores. Sim, tudo é possível para ti. Creio nisso de coração. Mas que aqui seja feita a Tua vontade, e não a minha”.
A autêntica devoção é a que se submete à vontade de Deus. A verdadeira devoção não é a que diz: “Senhor, eu te desafio a fazer isso ou aquilo”. Esse não é o devoto. É o tolo.
Como Pedro, tentando manobrar as ações de Jesus, conforme a narrativa de João 13: “Senhor, não lavarás os meus pés”. E Jesus responde: “Se eu não lavar teus pés, não terás parte comigo”. E então, novamente, Pedro tenta dar as cartas: “Se é assim, podes lavar o corpo todo. Também não, pare de me conduzir, pare de me conduzir. Não vou lavar o corpo todo”. E, de novo, o Senhor mostra quem está no controle:“Já foste lavado, Pedro. Basta que agora eu lave apenas os teus pés”.
Somos iguais a Pedro. Queremos conduzir as ações de Deus. Queremos dizer a Deus como deve agir, como deve fazer, e achamos que isso é devoção, e julgamos que isso é espiritualidade.
Fico impressionado com certos pastores e líderes religiosos que se sentem no direito de dar ordens pra Deus, pensando que tal atitude é demonstração de devoção e espiritualidade. Esse comportamento não passa de falsa devoção, ou pior, de devoção demoníaca. Pois é atitude demoníaca querer tomar o lugar de Deus, querer mandar em Deus, querer ser Deus.
A devoção verdadeiramente espiritual é a que declara: “Senhor, eu sei que podes. Sei que podes me curar dessa doença. Mas realiza o teu plano para mim”. Aliás, eu mesmo orei assim quando descobri que era necessário extrair um dos meus rins, totalmente danificado devido à tuberculose renal contraída dois anos antes. Dizia nas minhas orações: “Senhor, nasci com dois rins, e não gostaria de perder nenhum. Sei que és poderoso e bastaria um toque teu para esse rim paralisado voltasse a funcionar — e ainda melhor do que o outro rim que agora está funcionando perfeitamente. Creio que podes. Mas também creio e confio em teus propósitos para a minha vida. Então, faze do jeito que desejares. Se for preciso passar por essa experiência, eu passo. Se for inevitável perder um rim, eu perco. Tenho dois, ainda sobra um. E se eu chegar à mesa de cirurgia e o médico descobrir que há algo muito mais grave do o problema do rim, e se eu não voltar daquele hospital peço que confortes as pessoas que me amam e podem vir a sofrer com a minha ausência. No mais, eu sei para onde estou indo. Quem sou eu para dizer a ti o que fazer? Cumpra, Senhor, o teu propósito”.
A verdadeira devoção é essa. Não é a que tenta manipular Deus, ou mesmo suborná-lo com frases do tipo: “Senhor, faze isso ou aquilo para que o teu nome não seja envergonhado diante daqueles que não creem em ti”. A verdadeira devoção é deixar que Deus realize o seu plano.
Ouvi a respeito de uma senhorinha muito doente que foi visitada pelo pastor. Após alguma conversação, o pastor pede permissão para orar por ela. A senhorinha agradece. O pastor, então, começa a suplicar: “Senhor, nós sabemos que és um Deus de poder” — e a senhorinha responde: “Amém, amém”. O pastor continua: “Senhor, nós sabemos que tua serva está doente, mas deseja ficar boa, e nós também queremos vê-la restabelecida em breve”, e a senhorinha concorda com entusiasmo: “Amém,Senhor, amém”. E o pastor prossegue orando: “Senhor, cremos que podes curá-la se for da tua vontade”, e a senhorinha repete ainda mais fervorosa: “Amém, amém”. E o pastor: “Mas, Senhor, se não for da tua vontade que a tua filha se recupere, e tens para ela outro plano na eternidade...” Nesse momento a senhorinha respondeu: “Êpa, aí não!”.
Já perceberam como a gente só diz “amém, amém” enquanto Deus está agindo de acordo com aquilo que queremos e esperamos. Mas se Deus quiser agir de outra maneira, logo reclamamos: “Êpa, aí não!”. Quantas vezes você vai dizendo “amém, amém” enquanto tudo estiver acontecendo do seu jeito, como uma criancinha mimada, até descobrir que a vontade divina é outra, e então, batendo o pé no chão e fazendo birra, você logo grita: “Êpa, aí não!”.
Jesus Cristo, entretanto, tinha coragem de dizer: “Pai, faze a tua vontade, e não a minha. Estou em tuas mãos. Leva-me para onde quiseres, porque o cumprimento da tua vontade é, com certeza, a melhor coisa que pode acontecer em minha vida”.
Note agora, por favor, como o texto bíblico termina e o que acontece a seguir. Depois desses momentos de oração no Jardim das Oliveiras, o Senhor Jesus ordenou aos seus discípulos: “Agora vamos, está na hora, esse jardim não é lugar para ficarmos acomodados. É só uma breve parada para reabastecermos a nossa fé. É só um momento para revigorarmos o nosso ânimo e a nossa confiança em Deus. É uma oportunidade para Deus ampliar a nossa compreensão da sua vontade. Mas não podemos ficar aqui. Há muito mais coisas a fazer. Vamos nos levantar, vamos embora, porque já se aproxima aquele que me trai. Até agora estive profundamente triste, pedindo ao Senhor que passasse de mim esse cálice, mas agora cheguei à conclusão de que é isso mesmo que o Pai quer de mim, e a minha tristeza se transformou em alegria, pois a minha comida é fazer a vontade do meu Pai, e não há nada que me alegre mais. Vamos levantar, vamos seguir adiante, vamos embora, porque chegou a hora de cumprir a vontade do Pai”.
Podemos afirmar, então, que os momentos de devoção não devem ser apenas contemplativos, mas precisam levar à ação. A devoção verdadeiramente espiritual deve conduzir o crente do estágio da contemplação da glória divina ao estágio do cumprimento da missão dada por Deus aos seus servos. A devoção que não ultrapassa as paredes do templo, que não vai além dos cânticos nos cultos e se contenta em ficar apenas cantando, orando, decorando textos bíblicos, ouvindo belas mensagens e cumprindo ritos litúrgicos, sem nenhuma vinculação com a obediência, a prática da fé e o cumprimento da missão dada pelo Senhor, é uma falsa devoção.
A verdadeira devoção, depois de alimentar a nossa fé por meio da comunhão com Deus, do estudo da sua Palavra e da contemplação da glória divina, leva-nos a sair para as ruas, a testemunhar nos lares, a servir o próximo, a amar os necessitados, a ter uma vida santa e a colocar em prática, no dia a dia, os ensinos das Sagradas Escrituras.
A autêntica devoção leva você à ação, e não ao comodismo. A autêntica devoção leva você a agir, e não a se omitir. Somente uma devoção assim pode produzir a verdadeira espiritualidade.


SANTIDADE
Para falar da verdadeira espiritualidade através de uma vida santa, quero ler com vocês o trecho final do discurso de Jesus Cristo aos discípulos que costumamos chamar de Sermão do Monte, em Mateus 7.13-29: Entrem pela porta estreita, pois larga é aporta e amplo o caminho que leva a perdição, e são muitos os que entram por ela. Como é estreita a porta, e apertado o caminho que leva à vida! São poucos os que encontram. Cuidado com os falsos profetas. Eles vêm a vocês vestidos de pele de ovelhas, mas por dentro são lobos devoradores. Vocês os reconhecerão por seus frutos. Pode alguém colher uvas de um espinheiro ou figos de ervas daninhas? Semelhantemente, toda arvora boa dá frutos bons, mas a árvore ruim dá frutos ruins. A árvore boa não pode dar frutos ruins, nem a árvore ruim pode dar frutos bons. Toda árvore que não produz bons frutos é cortada e lançada ao fogo. Assim, pelos seus frutos vocês os reconhecerão! Nem todo aquele que me diz: “Senhor, Senhor”, entrará no Reino dos céus, mas apenas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus. Muitos me dirão naquele dia: “Senhor, não profetizamos em teu nome? Em teu nome não expulsamos demônios e não realizamos muitos milagres?” Então eu lhes direi claramente: Nunca os conheci. Afastem-se de mim vocês que praticam o mal! Portanto, quem ouve estas minhas palavras e as pratica é como um homem prudente que construiu a sua casa sobre a rocha. Caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, e ela não caiu, porque tinha seus alicerces na rocha. Mas quem ouve estas minhas palavras e não as pratica é como um insensato que construiu a sua casa sobre a areia. Caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, e ela caiu. E foi grande a sua queda. Quando Jesus acabou de dizer essas coisas, as multidões estavam maravilhadas com o seu ensino, porque ele as ensinava como quem tem autoridade,e não como os mestres da lei.
Não era à toa que aqueles ouvintes ficavam impressionados quando Jesus Cristo afirmava certas coisas bem chocantes, e as dizia com firmeza, e as afirmava com autoridade. O seu jeito de fazer aquelas declarações não se assemelhava ao estilo dos profetas do Antigo Testamento, por exemplo. Porque os profetas do passado eram apenas porta-vozes de Deus, eram instrumentos do Senhor para transmitir a sua mensagem. Jesus, porém, não era apenas um porta-voz de Deus. Ele era a própria Palavra de Deus encarnada. O Senhor Jesus não trazia um recado de Deus, mas era o próprio Deus transmitindo o recado com sua própria boca. Eis, portanto, a diferença.
Os mestres da Lei tão somente interpretavam ou tentavam interpretar a revelação, usando diversas categorias hermenêuticas, umas mais ortodoxas, outras mais liberais, dependendo do código teológico de cada um. Se o mestre fosse da corrente do rabino Shamai, seria de uma postura mais conservadora e rígida, mais tradicional e ortodoxa. Se, por outro lado, o mestre fosse da corrente do rabino Hilel, assumiria uma postura mais liberal, mais atualizada e aberta. Porém, no máximo, os mestres da Lei interpretavam o que já estava escrito. Jesus, não. Jesus não veio interpretar a revelação. Jesus veio revelar. Ele era a Palavra de Deus entre nós: “A Palavra se fez carne e habitou entre nós”, declara o evangelista João.
Os profetas antigos anunciavam: “Assim diz o Senhor”. Jesus, não. Jesus fixava o olhar sereno nos olhos dos seus ouvintes e anunciava: “Eu, porém lhes digo”. Essa era a grande diferença entre Jesus e os profetas e mestres da Lei. Por isso todos se admiravam ao ouvi-lo.
Ao encerrar seu discurso conhecido como o Sermão do Monte, Jesus estava diante de uma multidão maravilhada e admirada com todos aqueles ensinamentos, porque Ele os ensinava como quem tem autoridade.
Talvez o Sermão do Monte seja um dos textos que mais claramente descreva a verdadeira espiritualidade. Há duas coisas, pelo menos, que aprendemos com o Sermão do Monte, que abrange os capítulos 5 a 7 de Mateus, e o capítulo 6 de Lucas, numa versão mais resumida:
Em primeiro lugar, aprendemos que a espiritualidade não é algo a respeito de Deus a que você se apega ou se afeiçoa. Espiritualidade não é apego à igreja do Senhor, não é afeição à Palavra de Deus. A verdadeira espiritualidade é amor ao próprio Deus. É apego ao próprio Senhor. E não aos seus símbolos ou representações. Não existe para o crente relacionamento com os símbolos do Senhor. O que existe é relacionamento com o Senhor.
A verdadeira espiritualidade não é envolvimento com a causa do Reino de Deus, e sim envolvimento com o próprio Deus da causa e do Reino. A espiritualidade precisa ser vista na vida cotidiana, no dia a dia dos crentes.
A segunda coisa que aprendemos no Sermão do Monte é queespiritualidade não é uma postura litúrgica ou ritual. Não é ficar de olhos fechados o tempo todo, orando em todos os momentos. Alguém que faz isso pode até estar sendo muito sincero em sua devoção, mas necessariamente tal postura não quer dizer espiritualidade. Espiritualidade não é ficar com as mãos erguidas enquanto entoa um cântico com visível emoção, nem é chorar ou sentir um calafrio na espinha durante um culto fervoroso. Espiritualidade não é ver o amanhecer de joelhos após uma noite inteira em oração. Nem aparecer de rosto abatido depois de uma semana em jejum. Uma pessoa pode permanecer de olhos fechados durante um cântico no domingo e, na segunda-feira, chegar humilhando e ofendendo os colegas de trabalho. A pessoa pode ficar com as mãos erguidas enquanto ora durante um culto muito emocionante no domingo e, na segunda-feira, voltar a cometer os mesmos erros que já cometeu durante a semana anterior inteira. Espiritualidade não é dobrar os joelhos para participar da celebração da Ceia no domingo e, na segunda-feira, esticar a língua ferina para fazer maledicência a respeito dos outros.
O Sermão do Monte ensina que espiritualidade tem a ver com a vida e o comportamento dos crentes, tem a ver com as pessoas e sua conduta, tem a ver com o que é pensado, com o que é dito, com o que é feito. Então, precisamos entender que o conceito de santidade, muito especialmente no final deste discurso de Jesus e nos versículos que lemos, possui determinadas peculiaridades que não podem ser menosprezadas. Qualquer coisa que for chamada de santidade sem vinculação íntima com tais peculiaridades é, na verdade, uma falsa santidade.
Observemos inicialmente que a santidade da verdadeira espiritualidade é a que se vive no caminho estreito depois de entrar pela porta apertada. Jesus avisou: poucos são os que entram por essa porta, justamente porque ela é apertada, e poucos são os que andam por esse caminho, justamente porque ele é estreito. A santidade verdadeira leva o crente a renunciar, a abrir mão, a se quebrantar, a obedecer a vontade de Deus, a dizer não à tentação, a controlar os impulsos, a dominar os desejos. Não é todo mundo que consegue viver assim. Por isso, o Senhor Jesus advertiu: são poucos. Não é para a maioria.
O caminho largo não exige nada, e no final leva à morte. O caminho estreito exige renúncia, submissão e obediência, e no final leva à vida. Essa é a razão por que não me impressiono com multidões. A multidão grita: “Crucifiquem-no!”. A multidão grita: “Heil Hitler!”. Esse conceito de que igreja boa é igreja lotada não me convence. Quando vejo templos com multidões atrás de um líder carismático, logo recordo as palavras de Jesus: “o caminho é estreito e são poucos o que andam nele”.
Na multidão há muita gente curiosa e entusiasmada. O entusiasmo e a curiosidade costumam reunir muita gente. A pessoa entusiasmada pode tomar decisões e agir de modo impensado. Uma pessoa entusiasmada pode fazer escolhas irrefletidas. Depois, só lá adiante, quando o entusiasmo passar, é que vai ver as bobagens que escolheu e fez. O caminho largo está cheio de gente entusiasmada e curiosa. O entusiasmo não conduz à santidade. Pode levar à uma experiência de êxtase, mas não à santidade. O que conduz à santidade é a renúncia, é o compromisso com Deus, é a submissão à sua vontade.
A santidade é encontrada no caminho estreito. Não é para quem quer. Você pode até querer ser santo, mas não vai conseguir se, antes, não se tornar um discípulo de Jesus Cristo. E aquele que quer ser discípulo de Jesus deve negar-se a si mesmo, tomar a cruz e segui-lo. Não há outro jeito.
Tem muita gente querendo envolvimento com as coisas de Deus, mas não querem envolvimento com Deus. Tem muita gente querendo envolvimento com o poder de Deus, mas não querem envolvimento com Deus. Tem muita gente querendo receber as bênçãos de Deus, mas não se dispõe a obedecer a Palavra de Deus. A verdadeira santidade nasce do sincero relacionamento com o Senhor.
Além disso, a santidade da verdadeira espiritualidade é a da essência (e não a da aparência), é a do conteúdo (e não a da forma). O Senhor avisa: “Cuidado com os falsos profetas, porque eles são parecidos com ovelhas, mas por dentro são lobos. Árvore boa é aquela que dá fruto bom, e não a que está cheia de folhagens. Não é árvore que dá sombra, mas é a que dá fruto”.
A santidade a que o Senhor se refere é a do conteúdo, é a da essência. Vivemos numa sociedade que valoriza apenas a aparência, e aprendemos a fazer o mesmo. As pessoas só enaltecem a fachada, o ornamento, o enfeite, mas o Senhor Jesus mostra que o importante numa vida santa é o conteúdo, é o que somos por dentro, por trás da folhagem.
Em nossa mente estão fixados alguns estereótipos de santidade. Santidade, para muitos, é passar o dia inteiro dentro da igreja ou no interior de um mosteiro. É o conceito que perdura por quase todo o período da Idade Média. O monge era considerado um santo, a freira era tratada como uma santa. Por quê? Porque viviam isolados da sociedade, viviam no silencioso interior de um mosteiro, ou dentro de um convento. Ficavam lá o tempo inteiro, orando, entoando cânticos, jejuando. Na nossa mente isso é santidade. Em lugar nenhum da Bíblia a santidade é descrita nesses termos. Não somos chamados para ser santos nos altares. Somos chamados para ser santos no meio do povo. Para ser sal e salgar a terra. Para ser luz e iluminar o mundo. Para ser testemunhas de Cristo numa sociedade sem Cristo.
Essa é a santidade do conteúdo. O que faz de alguém um profeta de Deus? Os frutos. O conteúdo. O que faz de alguém uma ovelha de Jesus? Os frutos. O conteúdo. O que faz de alguém um discípulo do Senhor? Os frutos. O conteúdo. Ovelha não é ovelha só porque se veste como ovelha. Profeta não é profeta só porque se veste de profeta. A árvore não é boa só porque parece boa. Da mesma forma, o santo não é santo só porque se apresenta como santo.
Quer saber se alguém é realmente santo? Fale com a família dele. Fale com os filhos. Fale com os pais. Fale com o marido. Fale com a esposa. Fale com os vizinhos. Fale com o patrão. Fale com o empregado. Eles dirão se esse alguém é realmente santo ou não. Eles sabem.
Santidade é conteúdo, é vida, é a maneira como a pessoa se comporta. Há muita árvore cheia de folhas, mas sem nenhum fruto. A verdadeira espiritualidade leva a uma santidade de gesto e ação, e não só de palavras e discursos.
A santidade autêntica é a do caminho. E também é a do conteúdo. Acrescentemos agora uma outra característica da santidade autêntica — que é a fidelidade à vontade do Pai.
Jesus afirma com clareza: “Nem todo que me diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino dos Céus, mas aquele que faz vontade do meu Pai”.
Mais importante para o santo não é o poder de Deus, mas a vontade de Deus. Porque se ele estiver submisso à vontade divina, poderá ver a manifestação do poder de Deus.
Mais importante para o santo não são as bênçãos de Deus, mas o propósito de Deus. Porque se ele estiver interessado em cumprir os propósitos divinos para a sua vida, poderá experimentar as bênçãos de Deus. Pois as bênçãos de Deus resultam da nossa submissão à sua vontade.
Só recebemos bênçãos do Senhor se andamos nos seus caminhos. Não há promessa divina desvinculada da vontade divina. Isso parece muito claro no Salmo 1: o justo é como árvore plantada junto a ribeiros d’água e dá seus frutos na estação própria porque não segue o conselho dos ímpios, não imita a conduta dos pecadores, nem se assenta na roda dos escarnecedores.
Hoje, entretanto, estão divulgando que as bênçãos de Deus são derramadas quando participamos da corrente de oração tal, que a prosperidade só acontece quando ofertamos à igreja tal, que ficamos curados quando ouvimos a pregação do apóstolo tal, e assim por diante. Não há nada mais antibíblico. As bênçãos de Deus procedem da nossa obediência à vontade do Senhor, da nossa fidelidade aos valores e princípio do Reino de Deus, de uma conduta reta e do andar nos caminhos da justiça.
O que mais me impressiona nesse texto que lemos — “Então eu lhes direi claramente: Nunca os conheci” — é a veemência e a objetividade das palavras de Cristo. Ele vai dizer claramente: “nunca os conheci”. Àqueles que dizem “Senhor, Senhor” e não cumprem a vontade do Pai em suas vidas, o Senhor dirá claramente: “Nunca os conheci”. Simples assim.
A verdadeira santidade é a que cumpre e obedece a vontade do Pai, a Palavra do Pai registrada nas Escrituras, o propósito do Pai revelado através do seu Filho, Jesus Cristo. Não importa se a pessoa prega com eloqüência, se exorciza demônios com autoridade, se faz milagres de grande impacto. Importa mesmo é se a pessoa vive de acordo com a vontade de Deus. Essa é a santidade da fidelidade à vontade do Pai.
Enfim, o texto bíblico afirma que a santidade da verdadeira espiritualidade é a segurança que procede dos ensinos de Cristo colocados em prática.
De acordo com as palavras de Cristo, o homem prudente constrói a casa sobre a rocha, e não sobre a areia. Isso não significa que a casa construída sobre a rocha estará livre de ventos e tempestades. De modo algum. Haverá muitos momentos de ventos e tempestades. Só que a casa sobre a rocha não será derrubada. É essa a diferença.
Sabe o que significa construir a casa sobre a rocha? É ouvir os ensinos de Jesus Cristo e colocá-los em prática. Não é pertencer a esta ou àquela igreja. Não é seguir a este ou àquele pastor. É, tão somente, ouvir os ensinos do Evangelho e viver de acordo com eles. Então podem vir ventos e tempestades, e a casa sobre a rocha permanecerá firme em seu lugar.
Por que a santidade produz segurança? Por uma razão muito simples: aquele que ouve a Palavra de Deus e a pratica não tem o que temer. Pode ser injustiçado, mas sabe que está andando nos caminhos do Senhor e logo a justiça se manifestará a seu favor. Pode ser perseguido, mas sabe que está obedecendo a vontade de Deus e logo será recompensando por sua fidelidade. É dessa certeza que vem a segurança daquele que construiu a casa sobre a rocha. Pode enfrentar uma grande provação na vida e vai permanecer confiante, pois sabe que o Senhor a quem ele obedece e serve estará ao seu lado. Permanece confiante como Jô, mesmo depois de perder tudo: “Eu sei que o meu Redentor vive, e que no fim se levantará sobre a terra” (19.25). E canta como o compositor do hino da Reforma:
Se temos de perder família, bens, poder, embora a vida vá, por nós Jesus está, e dar-nos-á seu Reino.
Por isso Jesus vincula a santidade à segurança. Porque aquele que ouve e pratica os ensinos do Senhor, sabe muito bem onde está colocando os pés e por onde está andando.
Por outro lado, aquele que edifica a casa sobre a areia — isto é, que não ouve nem pratica os ensinos da Palavra de Deus — vive em constante temor, em contínua insegurança e em permanente ansiedade, pois bem sabe que chegará o dia de prestar contas a Deus.
Volto à mesma afirmação que fiz no início desta mensagem: não foi à toa que aquela multidão se impressionou com o que o Senhor ensinava.
Afinal, Jesus não estava falando de credos e dogmas, não estava falando de religião, não estava falando de igreja, não estava falando de denominação, não estava falando de ritos e liturgias, não estava falando de estratégias para o crescimento dos evangélicos no mundo.
Jesus estava falando de vida. Da vida que ele oferece e pode dar. Da vida que podemos ter por meio dele.
A santidade da verdadeira espiritualidade é vida de verdade. Vida na essência. Vida plena. Vida no sentido mais amplo. Vida de fato. Vida que só pode ser experimentada em Cristo.
Como lemos no testemunho do apóstolo João: “Quem tem o Filho, tem a vida. Quem não tem o Filho de Deus, não tem a vida” (1 João 5.12).
Não há verdade mais simples. Nem mais verdadeira.


AMOR
A quinta marca da espiritualidade é o amor. Depois de termos constatado que a verdadeira espiritualidade implica em humildade, contrição, devoção e santidade, aprendemos com a Palavra do Senhor que o crente autenticamente espiritual vive em amor.
Vamos ler três textos escritos por João Apóstolo — dois em seu Evangelho e um na sua Primeira Carta.

Comecemos com João 13.34-38, onde encontramos registradas as últimas instruções de Jesus aos seus discípulos antes de morrer na cruz, ressuscitar ao terceiro dia e subir aos céus para assentar-se à destra de Deus: Um novo mandamento lhes dou: Amem-se uns aos outros. Como eu os amei, vocês devem amar-se uns aos outros. Com isso todos saberão que vocês são meus discípulos, se vocês se amarem uns aos outros. Simão Pedro lhe perguntou: “Senhor, para onde vais?” Jesus respondeu: “Para onde vou, vocês não podem seguir-me agora, mas me seguirão mais tarde”. Pedro perguntou: “Senhor, por que não posso seguir-te agora? Darei a minha vida por ti!” Então Jesus respondeu: “Você dará a vida por mim? Asseguro-lhe que, antes que o galo cante, você me negará três vezes!” A seguir, vamos a João 21.15-17: Depois de comerem, Jesus perguntou a Simão Pedro: “Simão, filho de João, você me ama mais do que estes?” Disse ele: “Sim, Senhor, tu sabes que te amo”. Disse Jesus: “Cuide dos meus cordeirinhos”. Novamente Jesus disse: “Simão, filho de João, você me ama?” Ele respondeu: “Sim, Senhor, tu sabes que te amo”. Disse Jesus: “Pastoreie as minhas ovelhas”. Pela terceira vez, ele lhe disse: “Simão, filho de João, você me ama?” Pedro ficou magoado por Jesus lhe ter perguntado pela terceira vez: “Você me ama?” — e lhe disse: “Senhor, tu sabes todas as coisas e sabes que te amo”. Disse Jesus: “Cuide das minha ovelhas”.
Agora acompanhe a leitura de 1 João 4.11,12,19: Amados, visto que Deus assim nos amou, nós também devemos amar uns aos outros. Ninguém jamais viu a Deus; se amarmos uns aos outros, Deus permanece me nós, e o seu amor está aperfeiçoado em nós. Nós amamos porque ele nos amou primeiro. Se alguém afirmar: “Eu amo a Deus”, mas odeia seu irmão, é mentiroso, pois quem não ama seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê. Ele nos deu este mandamento: Quem ama a Deus, ame também seu irmão.
Meus queridos, o Senhor Jesus sabia que não estava pedindo nada impossível. Ele nunca pediu nada aos seus discípulos que fosse impossível realizar. Se Ele nos deixou alguma tarefa, se Ele nos deixou algum desafio, se Ele deixou algum mandamento para cumprirmos, é porque sabia que nós conseguiríamos cumprir, obedecer e realizar. Ele chegou a dizer isso aos seus discípulos: “Digo-lhes a verdade: Aquele que crê em mim fará também as obras que tenha realizado. Fará coisas ainda maiores do que estas, porque eu estou indo para o Pai” (João 14.12).
Nosso problema é que, quando lembramos de Jesus dizendo: “fará coisas ainda maiores do que estas”, logo imaginamos que se trata de multiplicar muito mais pães do que Jesus multiplicou, ou de ressuscitar mais mortos do que Ele ressuscitou, ou ainda de fazer andar mais paralíticos, e fazer mais cegos enxergarem, e mais surdos ouvirem. Não nos ocorre, porém, que Jesus se referia ao fato de termos mais oportunidades para perdoar, mais oportunidades para demonstrar misericórdia, mais oportunidades para proclamar o Evangelho, mais oportunidades de semear a Palavra, mais oportunidades de confortar os aflitos, mais oportunidades para amar o próximo do que o próprio Senhor teve ao longo dos breves três anos do seu ministério na terra. É como se ele dissesse aos discípulos: “Se eu, nesse curto espaço de tempo, restrito às regiões da Galiléia e da Judéia, pude fazer tudo isso, vocês poderão fazer bem mais no decorrer de 40, 50, 60, 70 anos de vida. Imaginem o que vocês poderão fazer, e como poderão amar, e perdoar, e espalhar o Evangelho, e distribuir misericórdia divina a um sem-número de homens e mulheres no mundo...”.
O Senhor Jesus esperava muito mais de nós, pode ter certeza. Esperava que a nossa preocupação com sua obra transcendesse as fronteiras das obras prodigiosas, como a multiplicação de pães e peixes, a ressurreição de mortos, a cura de cegos ou a recuperação de paralíticos. Esperava, na verdade, que alcançássemos muito mais gente com o nosso amor do que aqueles que estamos alcançando. Esperava, com certeza, que demonstrássemos muito mais amor do que estamos demonstrando. Esperava, sem dúvida, que pudéssemos perdoar muito mais do que perdoamos. Esperava, estejam certos, que tivéssemos muito mais misericórdia, e graça, e compaixão do que temos.
Tanto é que o apostolo João, compreendendo bem as expectativas do Senhor, fez esta conhecida declaração: “Se alguém afirmar: “Eu amo a Deus”, mas odeia seu irmão, é mentiroso, pois quem não ama seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê”.
Se alguém não é capaz de amar aqueles com quem convive diariamente, como pode amar a quem sequer vê? Se não é capaz de amar alguém que pode ser visto e tocado, como pode amar aquele com quem não convive fisicamente? Como pode amar aquele que é insondável, como pode amar aquele que é infinito, como pode amar aquele que é eterno, como pode amar aquele que não tem nome porque não pode ser nomeado, e se apresenta como o Eu Sou, se é incapaz de amar os que são finitos e limitados, os que são efêmeros e transitórios, os que são mortais, os que têm um nome?
De acordo com os textos bíblicos que lemos, podemos destacar algumas lições do apóstolo João a respeito do amor que caracteriza a verdadeira espiritualidade.
Em primeiro lugar, a capacidade de amar os outros resulta da nossa experiência pessoal como amor de Deus. Só somos capazes de perdoar se já recebemos o perdão divino. Só somos capazes de demonstrar graça se já tivemos uma experiência pessoal com a graça divina. Só somos capazes de ser misericordiosos se fomos beneficiados pela misericórdia divina. Se, de fato, tivemos uma experiência pessoal com o amor divino, como podemos ficar cultivando e nutrindo mágoas ou ressentimentos? Se o Deus perfeito e plenamente santo pode perdoar o pecador, como o pecador perdoado, com suas falhas e erros, pode se sentir no direito de negar o perdão a alguém, dando-se ao luxo de guardar ressentimentos e mágoas?
Imagine se Deus resolvesse nos tratar um só dia da nossa vida como costumamos, tantas vezes, tratar os outros. Imagine se Deus acumulasse ressentimentos em relação a nós na mesma proporção em que os acumulamos em relação aos outros. Imagine se Deus fosse intolerante conosco da mesmíssima maneira como somos intolerantes com os outros. Imagine se Deus resolvesse castigar-nos do mesmo modo como desejamos que os outros sejam castigados por Ele. Sabe o que aconteceria? O que previu o profeta em Lamentações: não sobreviveríamos um só dia. “Graças ao grande amor do Senhor é que não somos consumidos, pois as suas misericórdias são inesgotáveis” (3.22).
Foi o que aconteceu com Pedro. Precisou ter uma experiência com a graça divina, depois de trair Jesus, para ser restaurado e conseguir falar do seu amor aos outros.
Jesus ensinara o seguinte: “Vocês devem se amar uns aos outros, porque se não se amarem, como eu mesmo amei, as pessoas nunca saberão que vocês são meus discípulos”.
Não é porque você é membro de uma igreja, nem porque você tem uma religião, ou porque você é batizado, ou porque participa da ceia, ou porque tem um cargo na igreja, ou porque canta hinos tradicionais num coro, ou porque leciona a Bíblia e a sabe de cor, ou porque prega o Evangelho em praça pública, ou devido a qualquer outra coisa parecida com essas que você será reconhecido como discípulo de Cristo. Saberão que você segue a Jesus se for capaz de amar como Ele amou: “Amem-se uns aos outros como eu os amo”, disse o Senhor.
É um pouco diferente do outro mandamento. Por isso foi chamando por Jesus de novo mandamento. Aquele antigo mandamento ordenava: “Ame o próximo como a si mesmo”. Aprenda a se amar, aprenda a se respeitar, aprenda a se cuidar, resolva os seus complexos de rejeição, de inferioridade, ou quaisquer outros, porque se você não for capaz de amar-se a si mesmo, não será capaz de se relacionar bem com ninguém. Um mandamento suficientemente conhecido.
Mas agora o mandamento é outro. Não se trata apenas de amar como a si mesmo. O novo mandamento ordena: “Ame como eu amei”.
E é o seguinte: se Cristo perdoou, devemos perdoar. Se Ele foi misericordioso, devemos também demonstrar misericórdia. Se Ele amou, devemos amar.
Quando Pedro afirmou: “Senhor, vamos seguir-te, aonde fores”, Jesus respondeu: “Não, Pedro. Pelo contrário: você me negará três vezes antes de nascer o dia”.
Ao encontrar-se com Pedro após a ressurreição, Jesus lhe perguntou três vezes se ele o amava. E Pedro respondeu três vezes: “Sim, eu amo”. Na última vez chegou a declarar: “O Senhor sabe que eu o amo”. Pedro diz algo que acho fascinante, algo que é preciso ter muita coragem para dizer: “Senhor, tu sabes que eu te amo”.
Não é qualquer um que pode dizer isso. Deus conhece o nosso coração. Para Deus não podemos mentir. Não há como enganá-lo. Para afirmar: “Tu sabes que eu te amo”, é preciso ter certeza de que ama mesmo.
O que Jesus diz a Pedro como resposta — “cuida das minha ovelhas, cuida dos meus cordeirinhos, cuida do meu rebanho” — tem um significado especial. Aquele que diz amar a Deus deve estar disposto a direcionar amor também aos outros. Só demonstra verdadeiro amor a Deus quem ama e cuida do outro com amor verdadeiro.
Portanto, a primeira coisa que João ensina é que o amor aos outros só é possível a partir de uma experiência pessoal com o amor de Deus.
A segunda lição dos textos que lemos decorre da primeira: uma vez que experimentamos a graça divina, estendemos aos outros a mesma graça por meio de ações repletas de misericórdia e boa vontade.
Por isso, na oração do Pai Nosso, em Mateus 6, o Senhor Jesus ensina-nos a suplicar: “Perdoa as nossas dívidas, ou nossas ofensas, assim como nós perdoamos os nossos devedores, ou aqueles que nos tem ofendido”. E acrescenta: “Porque se vocês perdoarem os pecados dos outros contra vocês, o Pai os perdoará. Mas se vocês não perdoarem, o Pai não os perdoará”.
Por quê? Quem não é capaz de perdoar, nunca sentiu o perdão de Deus. Por isso, não está perdoado. Quem já experimentou o perdão de Deus na vida, e está perdoado pelo amor divino, não consegue guardar ressentimentos, nem mágoas, nem rancores. Afinal, ressentimentos, mágoas e rancores não fazem parte do coração de quem conhece a graça e o amor de Deus por experiência própria.
Os que seguem a Jesus não têm outra alternativa, a não ser orar pelos inimigos, orar pelos perseguidores, orar pelos que caluniam e difamam, dar a outra face, caminhar a segunda milha e pagar o mal com o bem.
Eu bem sei as provações que estou enfrentando por querer assumir uma postura firme e diferenciada diante de questões gravíssimas no contexto da nossa Convenção aqui no Rio de Janeiro. Mas, diante de Deus, poso afirmar a vocês que não carrego um pingo sequer de ressentimento em meu coração em relação a nenhum dos meus perseguidores. Ao contrário: oro por eles. Sabem por quê? Porque qualquer outra atitude, de ressentimento, mágoa ou vingança, significa tornar-me igual a eles.
Desde o começo entendi que uma ação profética sempre gera situações de perseguição e vingança. Quando alguém se levanta para assumir uma postura profética, de denúncia e defesa da ética bíblica, deve estar disposta a sofrer toda sorte de perseguições, incompreensões e opressões. Não conheço nenhum profeta das Escrituras que não tenha passado momentos difíceis quando resolveu permanecer fiel aos princípios do Reino de Deus. Mas não carrego comigo qualquer traço de ressentimento, mágoa ou revolta. Sabem por quê? Porque sei que não sou melhor do que ninguém. Sei que sou pecador e também careço da graça de Deus, também necessito da misericórdia divina.
Além disso, não manifestamos amor apenas nas grandes coisas. Quem ama sabe demonstrar amor nos detalhes do convívio diário. Não há como amar sem ser amável, sem tratar o outro com doçura, sem evitar respostas ásperas, sem engolir as desfeitas, sem renunciar à raiva e ao ódio.
Já perdi a conta de quantas vezes precisei pedir perdão à minha esposa e às minhas filhas por ter sido mais áspero, mais agressivo, mais ofensivo em certos momentos. Não tenho nenhuma dificuldade em reconhecer minhas culpas e pedir perdão. Quando você experimenta a graça que perdoa, não só tem a capacidade de perdoar, mas também tem coragem de pedir perdão.
Não há como amar e, ao mesmo tempo, ter prazer em humilhar os outros, em pisar nos outros, em dar respostas ríspidas, em fazer comentários ferinos e venenosos, em praticar injustiças ou espalhar maledicências.
Cristo não só possuía um discurso de amor, mas demonstrou esse grande amor ao reunir os discípulos no cenáculo para, durante a celebração da Páscoa, lavar os pés de cada um deles. O episódio está narrado em João 13. Naquela noite, o Senhor lavou os pés dos discípulos e, depois, declarou: “Se quiserem ter comunhão comigo, façam o que fiz com vocês aqui. Vocês me chamam de Senhor e Mestre, então devem fazer o que eu faço”.
Mas o que é lavar os pés hoje?
A igreja, de acordo com o apóstolo Paulo, é o Corpo de Cristo. Somos membros uns dos outros. A igreja é a comunidade dos que lavam os pés uns dos outros. Não somos a comunidade dos que mandam uns nos outros. Não somos a comunidade dos que exercem poder. Não somos a comunidade dos que tem domínio. Somos a comunidade dos que lavam os pés uns dos outros.
Em Romanos 12 há uma longa lista de coisas que podemos fazer para lavar os pés uns dos outros.
O amor, diz o apóstolo Paulo, deve ser sincero. Por isso, diz ele dediquem-se uns aos outros com amor fraternal. Isso é lavar os pés uns dos outros.
Quando formos fazer algo por alguém, façamos com o coração, como se estivéssemos fazendo para o próprio Deus. Isso é lavar os pés uns dos outros.
E Paulo ainda diz mais aos cristãos de Roma: prefiram dar honra aos outros mais do que a vocês mesmos. Isso é lavar os pés uns dos outros.
Sejam zelosos uns pelos outros. Sirvam ao Senhor, alegrem-se na esperança, sejam pacientes na tribulação, perseverem na oração e, de novo, compartilhem o que vocês têm com os santos em suas necessidades. Isso é lavar os pés uns dos outros.
Alguém está passando necessidade? Ajudem para que aquela necessidade seja atendida. Pratiquem a hospitalidade, recebam-se uns aos outros, confraternizem-se. Isso é lavar os pés uns dos outros.
Abençoem aqueles que os perseguem, abençoem e não amaldiçoe. A nós não cabe esta alternativa, só a de abençoar e fazer o bem, mesmo a quem quer o nosso mal. Isso é lavar os pés uns aos outros.
Alegrem-se com os que se alegram e chorem com os que choram. É muito fácil chorar com alguém que passa por uma dificuldade. Dificil é se alegrar com um colega de trabalho que é promovido justamente para o cargo que você desejava. Isso é lavar os pés uns dos outros.
Tenham uma mesma atitude de amor uns para com os outros. Não sejam orgulhosos, mas estejam dispostos a se associar também a pessoas de condição inferior. Isso é lavar os pés uns dos outros.
Não sejam sábios aos seus próprios olhos, nem retribuam a ninguém mal por mal. Procurem fazer o que é correto aos olhos de todos. Façam tudo o que for possível para viver em paz com todos. Nunca procurem vingar-se, mas deixem com Deus a ira. Não se deixem vencer pelo mal, mas vençam o mal com o bem. Isso é lavar os pés uns dos outros.
Meus irmãos queridos, não há espiritualidade sem amor, não há espiritualidade verdadeira sem que lavemos os pés uns dos outros. Essa é a pura mensagem do Evangelho.
O Senhor está cansado da espiritualidade litúrgica e ritual. Está cansado da espiritualidade dos dogmas. Está cansado da espiritualidade das ordens de culto e dos cânticos sem vida. É o que lemos na profecia de Isaías, capítulo 1. A leitura pode ser feita dessa forma:
Eu estou cansado dos cultos de vocês, estou cansado das mãos estendidas, estou cansado das orações fervorosas que vocês fazem, estou cansado dos templos cheios, estou cansado da música que vocês cantam. Não vejo valor em nada disso se vocês não estiverem dispostos a fazer o bem, a defender a causa dos que sofrem, a proteger os pequeninos. Em outras palavras, suas cerimônias religiosas me cansam demais, se vocês não estiverem prontos a lavar os pés uns dos outros e a amar uns aos outros como eu amei vocês.
Está na hora de passarmos a viver uma espiritualidade verdadeira, deixando de lado a espiritualidade artificial, vazia e inócua.
Está na hora de vivermos a espiritualidade que conduz à humildade, à contrição, à devoção, à santidade e ao amor.