Lições de uma moeda

(Uma análise de Mateus 22:15-22)

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A famosa frase “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” aparece nos três evangelhos sinóticos, sendo Mateus 22.15-22 a narrativa mais circunstanciada. O contexto dessa passagem registra três tentativas dos adversários de Jesus de fazê-lo cair em contradição: a questão sobre o imposto, a questão sobre o levirato e a ressurreição, e a pergunta sobre o maior mandamento. Eles estavam tentando “apanhá-lo em alguma palavra.” (v.15). O vocábulo que Mateus aqui usa no grego é um termo de caça que significa “armar cilada ou armadilha”. A estratégia conjunta de fariseus (grupo separatista de elite), saduceus (partido sacerdotal) e herodianos (partidários de Herodes Antipas) contra o inimigo comum – Jesus – de modo nenhum nos surpreende, pois as oligarquias políticas sempre são capazes de superar suas diferenças e unir-se, quando está em jogo sua dominação sobre o povo e a coisa pública. Não obstante, a questão do imposto era realmente importante, até explosiva, e do modo como foi colocada não deixava, aparentemente, nenhuma alternativa a Jesus: ou dizia sim (contra os judeus nacionalistas), ou dizia não (contra os dominadores romanos), ou “subia no muro”. Exatamente como acontece com algumas questões que enfrentamos atualmente.

No Império Romano as moedas desempenhavam uma função importantíssima, servindo como instrumento político e de propaganda, além, é claro, de sua função econômica. Através delas os imperadores cultivavam sua imagem e reputação, pois eram um dos poucos veículos de circulação em todo o império. A moeda imperial mais comum no tempo de Jesus foi cunhada por Tibério e trazia a inscrição “Tiberius Caesar Divi Augusti Filius Augustus Pontifex Maximus” (Tibério César, Filho Augusto do Divino Augusto, Sumo Sacerdote). Era um denário especial, de prata, que trazia também a imagem (cabeça e pescoço) do imperador. Foi essa a moeda que Jesus pediu que lhe mostrassem, com a qual se pagava um tributo per capita, chamado kenson (“censo”, daí, imposto do recenseamento) com referência ao fato de que todo habitante daquelas províncias (Judéia, Galiléia, etc.) entre 12 (sexo feminino) ou 14 (sexo masculino) e 65 anos devia pagá-lo. Era claramente um tributo pago ao dominador.

Evidentemente, fariseus,  saduceus e herodianos não estavam  preocupados com a questão do imposto em si mesmo, pois eram defensores do status quo e, no que respeita ao Império Romano, eram francamente colaboracionistas, por isso Jesus os chamou de hipócritas. Aliás, o jargão lisonjeiro usado por eles no v. 16, com referência a Jesus, é idêntico ao que os políticos atuais utilizam com referência às igrejas e líderes evangélicos. Mas havia um outro partido, o dos zelotes, que se opunha ferozmente não só a este, mas a todos os impostos, e pregava insubmissão ao Império Romano (a dominação romana era uma abominação aos olhos de um povo que tinha um destino messiânico). Era um partido nacionalista extremado, que defendia a luta armada, chegando a praticar atos terroristas. Devido aos punhais e adagas que usavam, suas principais armas, foram chamados de sicários pelo historiador Fávio Josefo, que os acusou de terem levado a nação à destruição por sua oposição aos romanos. Realmente, foram eles que tomaram o controle de Jerusalém em 66 d.C., provocando a dura resposta militar de Roma que culminou na destruição da cidade, em 70 d.C. É notável o fato de que entre os discípulos mais íntimos de Jesus havia um membro desse partido: Simão, o Zelote, um dos doze (Mt.10.4, Mc.3.18 e Lc.6.15). Portanto, a questão do tributo a César interessava a Jesus, sim; certamente tinha sido previamente avaliada por ele, e talvez até discutida com Simão, o Zelote, e com o círculo dos apóstolos, pois era um dos temas do dia na Palestina.

Mas Jesus não respondeu “sim”, nem “não”, e tampouco “subiu no muro”; antes “derrubou o muro” (Ef.2.14). Pois, se é notável a presença de um zelote entre os seus discípulos mais próximos, também o é a presença de um publicano – Mateus, outro dos doze (tenho curiosidade de saber como os dois conviviam em grupo tão fechado). E aí está uma grande lição dessa passagem: Cristo não veio dividir-nos, o propósito do Pai ao enviá-lo foi de fazer convergir nele todas as coisas, tanto as que estão no céu como as que estão na terra (Ef.1.10). Em Cristo não há judeu, nem grego (raça, etnia, cultura), não há escravo nem livre (classe social), não há homem nem mulher (gênero), porque todos somos um nele (Gl.3.28). Podemos acrescentar que em Cristo não há e nem pode haver partido político. O evangelho não pretende erguer muros entre as pessoas, pelo contrário, pretende derrubar os que existem.

A desconcertante resposta de Jesus começa por expor ao ridículo seus questionadores. “Vocês estão se referindo ao imposto que só pode ser pago com uma moeda especial, que eu não tenho. Vocês teriam essa moeda?” Os fariseus abominavam a moeda por conter não só uma imagem, mas uma inscrição idólatra, e os herodianos a desprezavam em favor das moedas cunhadas pelos Herodes, a quem entendiam pertencer o direito legítimo de cobrar impostos, ainda que tivessem de render vassalagem aos romanos. Entretanto, eles tinham a moeda, o que, por um lado, deixa claro a hipocrisia do seu discurso e, por outro, mostra que eles reconheciam a necessidade de pagar o imposto. Por que isso nos parece tão atual?
Entretanto, a pergunta “De quem são a imagem e inscrição?” nos remete a outro ângulo da questão. A moeda, ainda que fosse usada para propaganda política e religiosa, era um meio de pagamento, um instrumento da ordem econômica, fazendo parte daquilo que os economistas chamam de meio circulante. Portanto, estava inserida em um conjunto de relações comuns a qualquer sociedade minimamente organizada. Paulo disse, em Rm.13.4 que o Estado “traz a espada”, isto é, tem o poder de coerção para estabelecer e fazer cumprir a ordem, ainda que à época este poder tivesse que ser sempre conquistado pela força. Com “Dai a César o que é de César”, Jesus reconhece que temos, como cidadãos terrenos, obrigações mínimas e inevitáveis para com o Estado, seja ele quem for, para que o mesmo possa prestar os serviços necessários à existência da sociedade organizada e exercer suas funções de legislador, administrador e juiz. Aliás, há uma sutileza na sua resposta, imperceptível nas traduções que usamos: os questionadores usaram um verbo que dá a idéia de que o cidadão possa escolher pagar ou não, mas Jesus usou um verbo que significa que o cidadão está apenas devolvendo ao Estado o que lhe pertence por direito natural, e não algo que esteja em discussão.

Jesus colocou a questão em termos objetivos: “o que?” e “a quem?”. A imagem na moeda é de um simples homem, ainda que pretenda-se divino, mas este homem é o imperador, o detentor e símbolo do Estado. A imagem no ser humano é de Deus, que o criou. César não é Deus, e Deus não é César. Dai a César o que é dele: a obediência civil. Dai a Deus o que é de Deus: a vossa vida. César, o Estado, a moeda e tudo o mais subordinam-se a Deus, cujo poder está acima de todos os poderes. Entretanto, a organização social e política é uma permissão de Deus a homens que criou à sua imagem, e portanto, com poder de escolha e decisão, mesmo que este poder seja exercido contra a sua vontade, ou a revelia dela. Os modernos Estados de direito chegaram ao ideal aqui estabelecido por Jesus: a laicidade. Homens livres, eleitos livremente pelo povo, decidem livremente, independentemente de classe social, raça, religião ou gênero, sobre o formato que esses Estados terão. César não é Cristo e Cristo não é César. César não se impõe a Cristo e Cristo não se impõe a César, isto é, o fórum para discussão dos princípios que regem o Estado é o próprio Estado, e o fórum para a discussão dos princípios que regem a Igreja é a própria Igreja.