A Busca da Felicidade e a Missão da Igreja Hoje







Caros leitores,

a propósito dessa nova discussão sobre a inclusão do "direito à felicidade" na constituição brasileira (veja AQUI), deixo um texto que em breve será publicado em outro lugar. Começamos essa discussão no L'Abri em 2008, e tenho certeza que ela ainda vai longe!


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Há quase duzentos e trinta e cinco anos, em 04 de Julho de 1776, os fundadores dos Estados Unidos da América aprovaram, no Segundo Congresso Continental, a sua declaração de independência. O teor dessa declaração trouxe profundas implicações para a história do mundo até a atualidade:


“Nós sustentamos serem essas Verdades autoevidentes, de que todos os Homens são criados iguais, e que são dotados por seu Criador de certos direitos inalienáveis, entre os quais estão a Vida, Liberdade, e a Busca da Felicidade – e que para assegurar esses Direitos, Governos são instituídos entre os homens [...]”

E assim, pela primeira vez na história do mundo, a felicidade deixou de ser um luxo, ou uma ilusão cinicamente desprezada, ou um objeto de atenção filosófica e de inquirição pessoal, para se tornar em um projeto sociopolítico. Desde então se tornou matéria de direito natural, de princípio político, de projeto cultural.

Cada um de nós foi de um modo ou outro atingido por essas idéias: elas influenciaram meus conterrâneos, na inconfidência mineira; influenciaram os revolucionários franceses, e assim, indiretamente, aos republicanos brasileiros; e formaram a base de um sistema de cultura no qual estamos metidos até o pescoço. Por isso não apenas americanos, mas brasileiros, europeus, africanos e asiáticos se identificaram com o personagem principal do filme “À Procura da Felicidade”, estrelado por Will Smith. No filme o personagem confessa abertamente que “Thomas Jefferson era um gênio” – Jefferson foi redator da Declaração de Independência.

Quem assistiu ao filme com atenção pode ter sentido um pequeno incômodo. Não era um filme meloso sobre Pai e filho; era um filme sobre política. O diretor contou uma história, e com ela quis dizer: é assim que deve ser, oportunidades iguais, seja para o pobre, seja para o rico; se você lutar de verdade, você pode vencer na vida. Não será fácil, mas você pode chegar lá. Ninguém vai facilitar, nem dar nada de mão beijada; mas as estradas para a felicidade são públicas e democráticas. E no fim do filme ficamos sabendo que o personagem se tornou muito feliz. Pois ele ficou milionário...

De certa forma, era disso mesmo que a declaração de independência falava. Pois suas idéias sobre direitos naturais do homem se baseavam em John Locke, que falava, hora em “busca da felicidade”, hora em “propriedade”. De fato, na Constituição Americana, escrita doze anos depois, a quinta emenda substituiu “busca da felicidade” por “propriedade”, falando assim em “Vida, Liberdade e Propriedade”.

Uma vez livres do rei da Inglaterra os norte-americanos puseram-se a buscar a felicidade, através da propriedade; e quando o sistema econômico se metamorfoseou de capitalismo mercantil para capitalismo industrial, e depois para capitalismo de consumo, o conceito de felicidade também se metamorfoseou.

E assim chegamos ao mundo de hoje: felicidade é consumir: ter poder de compra, para desfrutar das mídias (televisão, internet, celular), para adquirir produtos atualizados... Trabalhar, sim, para poder consumir mais. Poupança não; comunidade não; o que se quer nessa sociedade é ser livre para fazer escolhas, para customizar a totalidade da experiência. Para tanto, o melhor é sermos uma sociedade de indivíduos que buscam narcisicamente a própria satisfação.

Nessa sociedade de indivíduos-consumidores, que Gilles Lipovetsky chamou de sociedade de hiperconsumo, dá-se um paradoxo: na medida em que aumenta o conforto, o prazer, o consumo, a satisfação dos desejos, aumenta igualmente a depressão, a frustração com os relacionamentos; a infelicidade. Que busca é essa, que não chega?

O mercado se alimenta da infelicidade, na medida em que manipula, refina e departamentaliza a insatisfação humana; mas também oferece fantásticos substitutos da religião, promovendo a sua oni- “Presença” (como certo Banco brasileiro) e seu poder de realizar fantasias. E como o prazer exterior é efêmero, o mercado desenvolveu também a possibilidade de renovar permanentemente as experiências de alegria através do aperfeiçoamento dos produtos e do atendimento.

Nesse universo, o Estado é o grande mediador. Ele passa a existir para mediar o relacionamento entre indivíduos narcisistas, que já não sabem viver em comunidade, e não conseguem resolver nada a não ser por meio de leis; e mantém também o mercado sob controle. Torna-se assim uma espécie de “gerenciador do narcisismo”.

Sem dúvida, há muitas pessoas e instituições trabalhando por fins mais nobres, como o fim da fome, da pobreza, da exclusão social, do preconceito. E o governo Brasileiro tem se mostrado solícito no apoio a essas iniciativas, além das suas próprias realizações. Mas precisamos ser honestos o suficiente para reconhecer que o fim disso tudo é quase sempre integrar todas as pessoas em um mesmo sistema cultural doente, que é o sistema da busca narcísica da felicidade.

Podemos nós, cristãos evangélicos brasileiros, falar em felicidade nesse universo? Eu creio que sim.

Ao invés de desenvolver técnicas de manipulação do desejo (como o mercado) ou meramente administrar e mediar entre indivíduos narcísicos (como o Estado), a Igreja deve pastorear o desejo.

Não se trata de negar a tecnologia, nem os seus benefícios, nem de proibir o consumo, nem de reprimir a liberdade individual; mas de mostrar a verdadeira relação dessas coisas com a felicidade. Pastorear o desejo significa ensinar às pessoas a verdadeira felicidade, libertando-as do narcisismo e das falsas promessas da sociedade de hiperconsumo para a fé em Cristo, e ensinando-as a utilizar os benefícios da modernidade com responsabilidade, de forma cristocêntrica.

Eu consideraria esse um dos maiores desafios da Igreja hoje: mostrar que os deuses desse Egito moderno são falsos, para que as pessoas se ponham a caminhar para o “deserto”, rumo à terra prometida. Segundo a minha percepção, anunciar Cristo como o caminho para a felicidade humana é lançar um tremendo desafio ao mundo moderno: pois implica em negar que o Governo e o Mercado sejam capazes de salvar os homens.

Anunciar o ano aceitável do Senhor significa anunciar o tempo de descanso para terra e da libertação dos escravos; a cura para os doentes e a restauração da vista aos cegos. No contexto da sociedade atual, o ano do Senhor implica também em ser livrado da necessidade acelerar o crescimento econômico e competir com a China, e assim conservar a biodiversidade brasileira; em ser curado da doença do desejo insatisfeito para obter o equilíbrio do amor; da cegueira narcísica para ver o outro além de mim mesmo; da escravidão do consumo individualista para encontrar deleite na comunidade e no serviço; da escravidão da carreira para dedicar tempo à família, mesmo sabendo que isso não ajudará em nada a ascensão profissional.

Tudo isso pode parecer difícil, mas não se trata de sacrifício heróico. Trata-se, antes, daquilo que deve acontecer quando vivemos a partir de um novo centro, que reorganiza as nossas prioridades. Trata-se de preferir o maná aos alhos e cebolas de Faraó.

A era hipermoderna e hiperconsumista é o tempo de uma nova missão; não apenas com o propósito de conquistar os não-evangélicos para as nossas igrejas, mas para alcançar todos os brasileiros com a Verdade. É urgente uma missão externa e também interna, que anuncie em Cristo a verdadeira felicidade, e eduque o povo de Deus para viver no mundo com sabedoria, sem cair no erro de tentar arrancar a felicidade das coisas temporais.

Se desejamos promover a felicidade do povo brasileiro, precisamos lutar pela melhora de suas condições de vida; mas precisamos também ensiná-lo sobre o que fazer com suas vidas. Precisamos apresentar uma resposta à moderna procura da felicidade; e a resposta é Jesus Cristo.